Temos dois pequenos problemas: pelo que estou percebendo, você utiliza seus argumentos baseados em princípios jurídicos e eu tento fugir um pouco disso. Afinal de contas, o direito costuma ser um consenso que pode estar certo ou errado. Acho circular avaliar certas questões do direito usando o mesmo direito que instituiu tais questões. Exatamente por esse motivo tento fugir disso. Este é só o primeiro problema. O segundo é que parece que estamos discordando logo nas premissas que fundamentam nossas posições. Ora, se você rejeita minhas premissas não é obrigada a aceitar minhas conclusões. E a recíproca é verdadeira. Mas vamos lá...
Primeiro pelo caso Watson. Caso se constate efetivamente que há em sua teoria os crimes de injúria qualificada ou racismo, ele será penalizado por isso e eu não tenho muitos problemas com esse fato, embora talvez possamos ter discordâncias sobre o que é o racismo, por exemplo. O problema mesmo é: o fato do cientista querer provar uma hipótese – nomeadamente a de que os negros tendem a ser menos inteligentes – deve ser considerada como racismo? Será que só a idéia contida na tese a faz racista? É um juízo perigoso e que pode fraquejar. Todos os dias ouvimos as pessoas dizerem que os asiáticos tendem a ter uma inteligência mais desenvolvida. Por que toleramos isso? Essa idéia não seria ofensiva a todos os outros? Acredito que toleramos por ser menos chocante e por não suscitar más lembranças históricas. Mas isso está longe de corroborar com censura prévia das idéias de Watson.
Além disso, e ainda sobre o racismo, não vejo porque uma pessoa não poderia dizer “não gosto de negros” ou “não gosto de brancos”. Até agora eu não vi absolutamente nada que me mostre o contrário. Por outro lado, incitação a violência ou a prática discriminatória são coisas completamente diferentes. Ora, existem pessoas que não gostam de homossexuais e que não necessariamente tolhem ou incitam qualquer tipo de comportamento em relação aos gays. Aliás, para fazer um adendo que não tem muito a ver com a discussão, parece que há um racismo de uma via só no país. A afirmação da raça só parece ser válida de em um dos "lados". De qualquer modo, acho esse papo de afirmação uma grande bobagem.
Na questão religiosa a coisa fica bastante pior. Difamação religiosa parece piadinha de mau gosto contada em bar. Significa que eu não posso fazer críticas ou sátiras pesadas a uma religião qualquer pelo simples motivo que os crentes irão ficar ofendidos? Estamos todos, com o perdão da expressão, fodidos. Citando Janer Cristaldo, nós sempre criticamos comportamentos, filosofias e artes com termos pesados. Agora não vamos poder criticar pesadamente religiões? Imagino que os crentes na cientologia devem estar felizes. Afinal, se eu ridicularizar uma religião que faz uma mistura de new age com ufologia vou ser enquadrado. Ora, a sura 2:191 do Alcorão diz claramente que se deve matar os infiéis. Por uma questão de direitos humanos, agora eu devo parar de criticar uma doutrina que explicitamente viola, veja só!, os próprios direitos humanos. Além do mais, é melhor parar de produzir história! Isso pode deixar muita gente magoada. Sobre Maomé, o bruto deflorou uma garota de menos de 10 anos. E eu não posso chamá-lo de pedófilo? Bom, já que é assim, vamos banir Nietzsche das bibliotecas. O filófoso acusa o cristianismo de ser responsável por boa parte da decadência da sociedade. Considera os ascetas moralistas como degenerados. É ofensivo! E agora? Opa, opa, opa! Isso tudo cheira ao medievo.
Aliás, essa medida pretensamente politicamente correta que os puros de coração tanto adoraram foi endossada pelos avançadíssimos países islâmicos. Ficamos assim, então. Os brutos fazem atentados e matam. Nós ficamos caladinhos, afinal, a sura 2:191 não deve ser difamada.
Mudando um pouco de assunto, você deve ter notado que eu usei a palavra “raça”. Você diz categoricamente que essa noção é uma falácia “cientificamente comprovada”. É um argumento de autoridade. E um mau argumento de autoridade. Tem gente boa que vai discordar frontalmente de você. Uma dessas pessoas é o cientista cognitivo de Harvard Steven Pinker, que diz o seguinte em “Tabula Rasa”:
...embora as diferenças genéticas entre raças e grupos étnicos sejam muito menores que as encontradas entre indivíduos, elas não são inexistentes (como vemos em sua capacidade de originar diferenças físicas e diferentes suscetibilidades a doenças genéticas, como a doença de Tay-Sachs e a anemia falciforme). Hoje virou moda dizer que as raças não existem, que são puramente construções sociais. Embora isso certamente seja verdade com respeito aos escaninhos burocráticos como ‘de cor’, ‘hispânico’, ‘asiático/habitante de ilha do pacífico’ e à regra generalizante para ‘negro’, é um exagero quando falamos das diferenças humanas em geral. O antropólogo e biólogo Vincent Sarich observa que uma raça é apenas uma família imensa e parcialmente endógama. Algumas distinções raciais, portanto, podem ter um grau de realidade biológica, embora não sejam fronteiras exatas entre categorias fixas. Os humanos, tendo evoluído recentemente de uma única população fundadora, são todos aparentados, mas os europeus, como se reproduziram principalmente entre si durante milênios, são em média parentes mais próximos de outros europeus do que de africanos ou asiáticos, e vice-versa. Como os oceanos, desertos e cordilheiras impediram as pessoas de escolher seus parceiros aleatoriamente no passado, as grandes famílias endógamas que denominamos raças ainda são discerníveis, e cada qual tem uma distribuição de freqüência de genes um tanto diferente das demais.
Portanto, dizer categoricamente que não existem raças e que isso é uma falácia comprovada é uma afirmação bastante perigosa. Você tentou dizer que sua tese era um truísmo, e vemos que há controvérsias.
Sobre o texto que te indiquei, eu sinceramente não consigo ver que ele defende que as pessoas “poderiam utilizar de seus próprios meios para discordar”. Não dá para tirar do texto, por exemplo, a noção de que é legítimo o uso da violência física para com um discordante de uma tese X. Calma lá, a coisa não abre espaço para essa interpretação. Não é essa anarquia toda. Sobre a frase de Orwell, ela significa simplesmente que a liberdade significa dizer aquilo que as pessoas não querem ouvir. Sua interpretação é bastante bonita, mas eu acho que Orwell defenderia meu direito de chamar Maomé de pedófilo. Ainda mais admitindo que ele trate os burocratas soviéticos como porcos. Sobre a frase do magistrado, bastante erudita até, só faltou ele demonstrar que realmente todo o comportamento social é necessariamente teleológico. Será mesmo que é? Será que não há ninguém que discorde dele? Cuidado para não pecar novamente com argumentos de autoridade. Aliás, basta que se encontre um só comportamento social não teleológico para ruir com a tese do excelentíssimo magistrado. Afinal, a negação de um quantificador universal é um existencial com o predicado negado. Mas essa questão da teleologia do comportamento social é menor nessa discussão. Falei muito e isso me deu fome. Fico por aqui.
Um comentário:
Bom, pelo menos em um ponto acho que concordamos: “Caso se constate efetivamente que há em sua teoria os crimes de injúria qualificada ou racismo, ele será penalizado por isso e eu não tenho muitos problemas com esse fato”. Quanto às suas outras indagações respondo (obviamente sem a pretensão de ser a dona da razão):
“o fato do cientista querer provar uma hipótese – nomeadamente a de que os negros tendem a ser menos inteligentes – deve ser considerada como racismo?” não tenho a mínima idéia, pois seria muito precipitado tirar conclusões de uma frase que resume o tema do trabalho de Watson. A priori eu tenderia a dizer que não, pois desconfio da divulgação midiática de determinados trabalhos científicos... de qualquer forma acredito que seja possível que seu trabalho passe pelo crivo do Judiciário que é dotado de mecanismos, técnicas e procedimentos institucionalizados para realmente julgar a questão.
“Será que só a idéia contida na tese a faz racista?” De que idéia você está falando? Do título superficial e talvez apelativo dado ao trabalho? Se for essa sua indagação eu me arriscaria a responder apenas se pudesse analisar o trabalho de Watson no seu conjunto e não me ater ao tema publicado na mídia que tende muitas vezes ao exagero e sensacionalismo. Uma idéia fora de seu contexto pode parecer racista, quando em uma análise profunda verificamos o contrário...
“Todos os dias ouvimos as pessoas dizerem que os asiáticos tendem a ter uma inteligência mais desenvolvida. Por que toleramos isso? Essa idéia não seria ofensiva a todos os outros?” Poderia ser ofensiva, como poderia não ser. Novamente depende do contexto no qual a afirmação se insere. Até hoje, nunca ouvi falar de um caso de um asiático, ou alguém que defenda com tanto fundamentalismo a superioridade asiática no tocante a inteligência, que tenha usado tal tese para ofender as outras “raças” praticando o crime de injúria qualificada, ou induzindo e incitando a discriminação racial de “não asiáticos” recaindo na hipótese do racismo. É muito mais comum verificarmos o inverso. Por isso, não se trata de “toleramos por ser menos chocante e por não suscitar más lembranças históricas”, mas simplesmente de tolerarmos por não serem idéias aplicadas em um contexto ofensivo ferindo os princípios à honra e à dignidade humana, ao contrário do que ocorre quando muitas vezes se fala na superioridade da raça branca (conforme os ideais divulgados pelos skinheads, por exemplo). Concluindo, sempre que o fato de ser asiático, negro, mulato, índio ou caucasiano der ensejo a comentários ofensivos à honra e à dignidade – o que só será verificado no caso concreto, tais condutas devem ser punidas.
“Mas isso está longe de corroborar com censura prévia das idéias de Watson”. Por favor, me aponte o momento no qual falei em censura PRÉVIA as idéias de Watson!!! Jamais haveria algo tão absurdo quanto à censura prévia!!! Repito que ninguém pode estabelecer um começo de coisas que devem ser ditas! Na verdade até poderia dizer que as idéias devem ser compatibilizadas com o princípio da dignidade humana e da honra. Mas não dá para separar o grupo y compatível com esses valores do grupo x ofensivo a priori sem uma análise casuística.
Além disso, conforme minha tese que nenhum direito é absoluto, os princípios da dignidade humana e da honra podem ser restringidos, tal como a liberdade de expressão. Assim, creio que haja a possibilidade de que uma idéia ofensiva prevaleça no caso concreto em prol da liberdade de expressão em detrimento da dignidade da pessoa humana e da honra, por envolver outros fatores como a liberdade política, assim como fez Orwell. Prova disso, é que os parlamentares possuem uma imunidade, ao não poderem ser punidos pelo exercício de sua liberdade de expressão no exercício de função. Portanto, não distorça meu pensamento radicalizando meu ponto de vista a esse nível!
“não vejo porque uma pessoa não poderia dizer “não gosto de negros” ou “não gosto de brancos””. Ora, o fato de causar um mal estar no outro indivíduo e até no circulo social onde tal frase é aplicada, ferindo a sua dignidade e à sua honra por causa da cor da sua pele não significa nada para você? Mas, entenda bem, só se sua frase poder efetivamente ferir esses princípios citados. Porque nesse caso, acho que o crime aplicado seria o da injúria, muito menos mais grave do que o racismo que é um crime formal e basta você “induzir, praticar ou incitar” para recair na sua hipótese, mesmo que ninguém se sinta ofendido. No caso da injúria, se alguém vir até a minha pessoa e dizer: “não gosto de brancos” eu não me sentiria ofendida e não haverá injúria. Mas se eu me sentisse ofendida e provasse por A mais B essa ofensa, haveria injúria, pois foi ferida a minha dignidade e honra pelo mero desejo de um outro ser em me ofender, ou querer fazer uma piada. Não parece razoável que essas intenções, de pouco ou nenhum valor, se sobreponham a minha dignidade e a minha honra. Por isso, novamente eu volto ao cerne da minha tese: ninguém pode estabelecer um começo de coisas que devem ser ditas. O que deve ser feito é no caso concreto se verificar a razoabilidade da idéia exposta, se ela feriu princípios como o da dignidade e da honra e se não haveria outros princípios como o da liberdade política que justificasse o afastamento desta mesma dignidade honra. Essa é uma questão muito subjetiva e requer uma análise casuística. Cito o caso de um homem que morava em uma cidade bem tradicionalista do sul do Brasil, de colonização alemã. O cidadão foi xingado de “corno” por em indivíduo em um bar, simplesmente porque quis colocar panos quentes em uma briga que acontecia. Resultado, o “corno” deu um soco no ofensor que bateu a cabeça na quina da calçada e morreu. Nesse contexto, ele alegou que seu ato que culposamente acarretou na morte de seu ofensor consistiu em uma legítima defesa da honra. Ora, nós, com nosso pensamento cosmopolita de uma grande metrópole, podemos até pensar: “corno”? Meu deus, como alguém pode se ofender a tal ponto com um xingamento tão corrente e boçal! Basta alguém me dar uma fechada no trânsito para eu xinga-lo de “corno” o que de forma alguma legitimaria uma reação que consistisse em uma “legítima defesa da honra”. No entanto, o juiz que julgou a questão, com muita sensibilidade, considerou o contexto sociológico e as repercussões psicológicas de uma ofensa - que para nós parece banal - naquela pequena e tradicional comunidade. Por isso, essa questão do que é injúria, o que é ofensivo e o que fere a dignidade e a honra é algo muito subjetivo, na qual não cabe posições radicais do tipo: não, não se pode censurar Watson, ou, sim se pode censurar Watson. Depende de uma gama de fatores muito mais complexos do que imaginamos.
Outra colocação sua: “Significa que eu não posso fazer críticas ou sátiras pesadas a uma religião qualquer pelo simples motivo que os crentes irão ficar ofendidos?” Bom, novamente volto ao ponto: ao meu ver a ofensa aos crentes pode ser um simples motivo, como pode não ser tão simples. Depende do quão pesadas são suas críticas, qual o grau de revolta e intolerância ela propaga, se fere outros direitos como o da dignidade humana e da honra de uma comunidade, se denigre símbolos e entidades, em qual momento e contexto elas foram feitas, etc etc... Por exemplo, para mim foi extremamente absurdo o ato de um pastor da Igreja Universal chutar a imagem de Nossa Senhora Aparecida... E olha que eu nem sou católica e também tenho minhas severas críticas a essa instituição... mesmo assim eu simplesmente não tenho palavras de como esse ato me pareceu asqueroso, repugnante e desrespeitoso. O que não impede que qualquer um possa fazer suas críticas sérias a Igreja Católica, mas sem o escopo de denegrir uma instituição, causando o furor e o fanatismo religioso. Por exemplo, eu não me reprimiria a dizer minha opinião pessoal sobre os pastores da Igreja Universal para você. Eu os considero um bando de mercenários que se utilizam da ignorância, das emoções e da vulnerabilidade emocional de seus fiéis para arrancar dinheiro de quem quase nada tem. Agora, é diferente de eu chegar no meio do culto da Igreja e falar em alto e bom som: “seu mercenário fdp!”, ou tecer tal comentário após o culto a um grupo de fiéis na rua. Uma coisa é eu expor minhas críticas com o intuito de suscitar um debate, uma reflexão ou uma simples conversa, e outra bem diferente é eu tecer tais comentários para ofender os outros. Uma coisa é você dizer que “o papa nada mais é do que um velhote que usa saias proferindo alguns anacronismos” – o que eu particularmente concordo - mas outra coisa é você chutar publicamente a imagem de Nossa Senhora. Como você percebe eu prezo muito que há lugares e tempos que determinados atos e idéias podem ser subjetivamente ofensiva ou não. E as pessoas deveriam ter mais responsabilidade sobre o que se diz por aí, muito mais no meio público, e no âmbito dos órgãos de comunicação em massa...
Outra consideração sua: “Por uma questão de direitos humanos, agora eu devo parar de criticar uma doutrina que explicitamente viola, veja só!, os próprios direitos humanos”. Não, você pode perfeitamente criticar quem viola os direitos humanos. Mas há formas, lugares e tempo apropriado para isso, como já apontei. Então entro em outra angústia sua: “E eu não posso chamá-lo de pedófilo?”. Quem disse que ele é pedófilo? Você está dizendo isso com base em um julgamento fundamentado com nossas atuais leis que demoraram séculos para se consolidar com esses valores e sem nenhum direito à defesa do acusado. Por isso, sim, isso consiste em uma difamação religiosa, que nada mais é do que uma falsa imputação de um crime a alguém. Muito cuidado ao sair por aí tecendo julgamentos com base em evidências históricas que, sabe-se lá por quem, podem ter sido manipuladas...
E não, não sou radical ao ponto de achar que Nietzsche deveria ser banido das bibliotecas, ou até mesmo que todos os exemplares de “Mein Kampf” do Hitler deveriam ser queimados em praça pública. Observe bem, acredito que todas as manifestações devem ser analisadas em seu devido contexto para evitarmos radicalismos. Novamente o alerta para você não polarizar a discussão nesses termos.
Quanto a sua consideração sobre “raça”, muito interessante o trecho por você trazido, mas fico com a outra dúzia de cientistas que a consideram um conceito muito menos biológico que sócio-cultural... E de certa forma o seu cientista parece concordar com isso ao dizer: “diferenças genéticas entre raças e grupos étnicos sejam muito menores que as encontradas entre indivíduos, elas não são inexistentes”. Não nego que haja diferenças genéticas, mas pra mim ela são muito menos relevantes do que a concepção sócio-cultural de raça.
Ok, realmente exagerei ao dizer que o texto de certa forma legitimaria o uso da força para a defesa de não x. Mas, o ponto que eu queria chegar é que relegar a defesa de não x a cada pessoa imersa em suas condições sociais, econômicas e políticas diferentes é gerar em muitos casos desigualdades e injustiças. Por isso que defendo um procedimento institucionalizado para essa defesa.
Quanto à teleologia do comportamento social, se você me citar um exemplo de um ato que consciente ou inconscientemente não vise a um determinado fim – e isso desconsiderando as patologias - eu vou ser obrigada a concordar com você. O problema é que seu exemplo passará pelo crivo de uma convicção que tem mais lógica para mim, de acordo com o pouco que já li de Freud nas aulas de psicologia, ou até mesmo de filósofos jurídicos, juristas e sociólogos que já tive a oportunidade de estudar... De qualquer forma, estou sempre disposta a pensar em novas possibilidades quando elas me são colocadas.
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