1 de abril de 2009

Mais uma vez o papo

Eu não vou poder te apontar algum estado democrático de direito que há a absoluta liberdade de expressão porque eu acho que não existe este estado. Se existir, eu desconheço. No mais, parece que há certo mal entendido aqui. Quando digo sobre liberdade irrestrita de opinião, é sobre a liberdade irrestrita de idéias em um sentido amplo - talvez eu poderia de fato ter sido mais claro antes. Tudo o que eu disse converge com essa noção, e não com uma anarquia total. Defendo veementemente que cientistas como Watson possam dizer que não temos nenhuma razão para acreditar que negros são igualmente inteligentes em relação aos brancos. Posso achar a idéia profundamente absurda, mas não vejo porque ele não possa dizer isso. Note que é bem diferente de impedir a entrada de um negro em algum estabelecimento comercial, por exemplo. De uma forma um pouco diferente, dizer que Maomé era um pedófilo é bem diferente de atrapalhar uma celebração islâmica. Será mesmo que a execração pública sofrida por Watson é razoável?...

E você me diz que a “finalidade pedagógica e preventiva da lei é legitimada pelos valores sociais vigentes”. Bom, isso parece bastante intuitivo quando falamos de restrições intuitivas a atos não tão intuitivos assim, como o protagonizado por Watson. Mas será que podemos universalizar a legitimação de algo pelos “valores sociais vigentes”? Mesmo com sua argumentação no sentido de que tal legitimidade se dá por aprendizados históricos, isso não é suficiente para concluir uma infalibilidade dos aprendizados históricos. Muito menos é suficiente para dizer que determinadas idéias não podem simplesmente circular. Exemplificando, sei que jamais um estado democrático deva ser minado em prol de um totalitarismo. Simplesmente não se deve permitir isso. Aprendemos que democracia é melhor do que autoritarismo. Mas não acho razoável, por exemplo, punir um indivíduo só por que ele manifesta apoio a, digamos, uma ditadura fascista no país.

Opa, espere aí. A citação de Hobbes é mais uma vez a clássica falácia do penhasco. Em nenhum momento eu neguei a necessidade da existência de leis e normas de conduta, de modo que eu jamais defendi qualquer coisa parecida com um estado de natureza. Vamos com calma. Eu estou falando sobre livre circulação de idéias sem que algo a priori me diga quais idéias eu não posso defender. E disso jamais se segue logicamente um estado de natureza. Espero que já tenha entendido em que sentido estou falando de liberdade de expressão. E o exemplo de Watson é paradigmático daquilo que defendo. Ah, claro, o exemplo das charges sobre Maomé também se ajusta.

Sobre a questão do bom e velho politicamente correto, vou vinculá-lo ao que disse no texto sobre a difamação religiosa, pois é com o que me comprometi. Neste e em outros casos, parece que a liberdade de expressão deve ser restrita em função do sentimento de ofensa por parte dos crentes. Nisso estou com George Orwell: “Se a liberdade significa realmente alguma coisa, significa o direito de dizer às pessoas o que elas não querem ouvir”. Desse ponto de vista, jamais vou me autocensurar para dizer minha real opinião sobre Maomé ou sobre qualquer outra possível ficção sagrada só porque os aiatolás de turbante ficarão realmente chateados. Reiterando, há uma grande diferença disso para o tolhimento do direito de culto dos islâmicos. Assim como há uma diferença bem grande do que Watson fez para o crime de, digamos, injúria contra um negro.

Em suma, trata-se do direito de qualquer pessoa ser machista, racista, sexista ou qualquer coisa que o valha e de dizer isso. Trata-se, também, claro, de fazer exatamente o que Watson fez: poder ter idéias que são completamente não intuitivas e dizer isso. Muito diferente disso é explorar ou discriminar pessoas por determinada condição. Posso até ser racista, e dizer que o sou, mas isso não me dá subsídios para explorar ou discriminar negros, por exemplo. Querer proibir o primeiro caso é simplesmente patrulhamento.

Para terminar, você parece ter citado Carl Sagan indevidamente. Eu concordo com você que somos passageiros e pequenos demais para ficar por aí dizendo besteiras. Mas isso não significa que não se possa dizer besteiras. Nossa pequenez perante, sei lá, o universo não é de modo algum suficiente para que alguém não possa lá dizer suas besteiras. É bastante bonito citar Carl Sagan aqui, mas é improcedente.

Se quiser ler um texto melhor e mais rico do que o meu sobre essa linha de opinião, http://criticanarede.com/html/ed110.html.

Um comentário:

Paula Nogueira disse...

Bom, vou tentar ser mais direta ao ponto e se ater exclusivamente a sua argumentação para refuta-la. Realmente parece que eu fico divagando a fim de distorcer a sua tese. Vamos lá...
Quanto a teoria de Watson você diz o seguinte:
“Posso achar a idéia profundamente absurda, mas não vejo porque ele não possa dizer isso. Note que é bem diferente de impedir a entrada de um negro em algum estabelecimento comercial, por exemplo”.
Em primeiro lugar, eu não tenho nenhum conhecimento aprofundado da teoria de Watson, por isso não tenho a menor capacidade de julga-la como censurável ou não. Porém, como venho defendendo, eu acredito que há sim determinadas idéias que não podem ser ditas. Assim, por meio de um longo e exaustivo estudo, com o direito a todo o contraditório e ampla defesa a Watson, acredito que deva haver a possibilidade, veja bem, a possibilidade de que suas idéias se enquadrem no crime de racismo ou de injúria qualificada. Se esse for o caso, sim, suas idéias devem ser censuradas, pelo simples motivo de que vige no nosso Estado de Direito o padrão de legalidade. Ou seja, uma vez que a norma é válida no nosso ordenamento jurídico ela deve ser efetividade e para tanto deve haver uma “desconfirmação da desconfirmação”, ou seja, a repugnância de quaisquer atos que desconfirmem a norma feita por meio de uma autoridade institucionalizada. O que significa que há um consenso presumido pela sociedade. Presumido, pois trata-se de uma construção, uma ficção imprescindíveis a validade de nosso ordenamento jurídico. É isso o que eu quis dizer com “valores sociais vigentes”. Obviamente não encontraremos uma coesão de valores, mas não só podemos como devemos estabelecer essa presunção evidenciada em procedimentos institucionalizados (por exemplo, a eleição do legislativo que elaborará as normas em tese objetivando o interesse público, o bem estar social, as organizações partidárias, o processo civil e criminal, o inquérito policial, o processo legislativo, o controle de constitucionalidade do judiciário, entre outros). A partir do momento que uma norma passou por todos esses filtros é considerada válida em um ordenamento, pressupõe um consenso social a respeito dela.
A partir do momento que o crime de racismo e da injúria são não apenas normas válidas (padrão de legalidade) como também consensuais socialmente de modo que lhe confira efetividade (que eu posso chamar de padrão legitimidade) é inconcebível que todas as idéias sejam aceitas. É certo que sua tese possui sua lógica, mas não validade jurídica e nem presunção de consenso social. É com esse argumento positivista (e não o histórico e sociológico que já expus) que posso colocar a questão.
Assim, uma vez que a norma do racismo é válida e respaldada por um consenso social oriundo dos processos institucionalizados que lhe deu origem, não apenas é crime impedir a entrada de um negro em algum estabelecimento comercial como também é crime reproduzir idéias que consistam em uma prática, induzimento ou incitação a discriminação, ainda que você não a faça efetivamente. Se você achar muito radical a hipótese de racismo na divulgação dessas simples idéias, elas não fogem ao crime de injúria que consiste na “ofensa à dignidade e decoro, utilizando elementos referentes a raça”. O mesmo com Maomé. Se chamá-lo de pedófilo não recai na hipótese do crime de perturbação a ato religioso, é bem viável que você recaia no de injúria e na mais recente “difamação religiosa”. Esse é meu argumento positivista que se legitima pelos procedimentos institucionalizados e aceitos socialmente para que determinadas idéias sejam coibidas.
À margem do argumento positivista acima exposto, concordo plenamente com a institucionalização desses crimes. Não pretendo aqui fazer novamente uma longa exposição sobre os motivos históricos, sociológicos e psicológicos que levaram o legislador a esse fim. No entanto, gostaria de ressaltar que esse crime foi tipificado por meio do uso da técnica da proporcionalidade, que em suma, confronta um determinado ato (no caso a limitação da liberdade de expressão) com os direitos por ele restringidos (a própria liberdade de expressão), para a efetivação de outros direitos (dignidade da pessoa humana, honra e igualdade, por exemplo) mitigados caso não houvesse a regulação. Portanto, você pode concordar ou não com a ponderação feita pelo legislador – eu pessoalmente concordo que os valores que restringiram a liberdade de expressão devem ser sobrepor nestes casos – mas fato é que a norma é válida e legítima socialmente.
Ah sim, apesar de que religião não seja efetivamente uma raça para se subsumir a prática do racismo, pelo conceito sociológico de raça (uma vez que biologicamente foi comprovado que a divisão entre raça negra, branca, ou seja lá qual for é uma falácia), a própria lei também inclui a proteção de etnia, religião ou procedência nacional na mesma lei.
Por isso, o exemplo desses dois crimes mostra como a situação é muito mais complexa do que simplesmente aceitar a divulgação de todas as idéias, pois envolve um complexo procedimento de positivação institucionalizado e aceito socialmente, bem como a proteção de valores essenciais a pessoa humana.
Como disse em certa ocasião, não pretendo aqui estabelecer um limite do qual as coisas devem ou não ser dita. Assim, se você vier com exemplos e mais exemplos do que a seu ver não merece uma censura, eu posso muito bem concordar. Você citou o apoio a uma ditadura fascista no país. A ponderação aí seria outra, pois envolveria valores como a liberdade política. Por isso a técnica da proporcionalidade seria aplicada de outra forma, de modo que até poderia chegar à mesma conclusão que você.
Quando citei Hobbes, quis fazer uma crítica a sua idéia (e até mesmo aquela defendida no texto que você indicou) que as pessoas podem falar o quiser e as ofendidas poderiam se utilizar de seus próprios meios para discordar. Essa idéia é muito perigosa, pois os meios para se defender uma idéia ou discordar dela, estando o Estado, as leis e as instituições alheias a essa defesa, podem reduzir o indivíduo a animalidade de seu estado de natureza, utilizando a força, e privilegiando os mais fortes, seja física ou socialmente. Algumas instituições religiosas ou meios de comunicação podem se utilizar de meios poderosíssimos de manipulação para se defenderem, ou até mesmo ferramentas violentas de afirmação da honra. Por isso eu considero muito mais viável que a defesa desses valores e respostas a idéias absurdas sejam feitas de forma institucionalizada e para tanto considero imprescindíveis que haja leis e instâncias de julgamentos que para tutelar os interesses de forma racional e igualitária.
Quanto a frase de Orwell, vamos coloca-la em seu devido contexto para não darmos a ela uma conotação vulgar. Dizer às pessoas o que elas não querem ouvir, vem mais como um alerta a sairmos da zona de conforto, estimularmos a reflexão crítica e utilizarmos o poder de ação quanto a certas situações políticas e sociais, do que como um direito de sairmos por aí ofendendo-nos e dizendo besteiras sem qualquer finalidade.
Sim, qualquer pessoa tem o direito de ser machista, racista, sexista ou qualquer coisa que o valha, mas não, não podem sair por aí pregando idéias “intuitivamente” irrazoáveis. As não intuitivamente irrazoáveis, com certeza estão passíveis, sim, à censura após uma análise complexa e racional por órgãos socialmente institucionalizados, pelo simples fato de que, repito, existem valores outros, que você parece não os considerar, quando abusamos de nossa liberdade de expressão.
E não quero tirar o direito de ninguém de dizer suas besteiras. Mas minha interpretação a consideração de Carl Sagan é que a vida é muito curta e nós somos muito insignificantes para termos a pretensão de desferirmos ofensas tornando nossa convivência e nosso único lar muito pior do que poderia ser.
Quanto ao texto citado, interessantíssimo, principalmente na construção da argumentação baseada no binômio: distanciamento epistémico e tolerância. Concordo plenamente com essa tese, mas faço uma importante ressalva que altera significantemente a conclusão. Todo o ato humano visa a uma finalidade e cito novamente trecho de um Magistrado em uma decisão sobre o racismo que resume a questão: “O comportamento social é necessariamente teleológico, realiza um projeto, caracteriza-se pela intencionalidade, e só tem sentido na relação entre a situação que o agente vive e a orientação que consciente ou inconscientemente adota”. Uma coisa é cada um ter o direito de defender x, sendo que o distanciamento epistémico e a tolerância permitam a aceitação (não a concordância) de idéias não x. Outra coisa, muito diferente e mesquinha, é justamente o apego a determinada crença e a intolerância enraizada que me faz ofender quem defende x, colocando-me em uma posição de superioridade e ridicularizado x. Esse é o cerne da verificação da ponderação entre os valores da liberdade de expressão em confronto com a dignidade humana e honra: a finalidade da conduta. A partir de então que verificaremos se no caso deve preponderar uma simplesmente finalidade de escárnio em detrimento da dignidade humana, ou se em ou outro caso predomina a liberdade política e a crítica social efetivadas pelo exercício da liberdade de expressão.