30 de maio de 2009

Teatrinhos e sujinhos

Ontem eu estava no bar. Como de costume, eu queria beber alguma cerveja com meus amigos e falar mal de pessoas que, obviamente, não estavam no bar. Ali pelas onze e meia da noite entram no boteco uma menina com aspecto sujinho e um rapaz de vinte e poucos anos. A menina portava um enorme tambor e o rapaz estava sem camisa e vestia uma saia. Comecei a ter coceiras. Se tratava de mais uma daquelas malditas misturas de peças de teatro com estética circense com um quê de vulgata política. Um teatrinho de tese do mais vagabundo. Faz a gente desejar que o governo corte imediatamente as verbas direcionadas aos departamentos de artes cênicas.

Não teve jeito. A menina se acomodou exatamente do meu lado e começou a tamborilar em um ritmo especialmente irritante. Composto exatamente para desagradar o ouvinte. Enquanto ela agredia o tambor, o rapaz ficava de quatro no chão e dizia algumas coisas mais ou menos ininteligíveis. A minha reação - além da coceira - foi a que qualquer ser humano minimante sensato poderia ter: tentar atrapalhar, é claro. No fim da apresentação, o veredito era óbvio: que, com exceção do enterro de minha avó, aquilo era a coisa mais desagradável que eu já tinha visto na vida. Por fim, pus três moedas de 10 centavos no boné para irem embora.

Movimentos estudantis adoram esse tipo de teatro. Costumam pintar a cara e ir aporrinhar alguém em algum lugar. O problema é que essa modalidade de manifestação está cada vez mais com aspecto de mendigo. A intenção normalmente é chocar os pobres espectadores com alguma idéia, mas o máximo que andam conseguindo é chocar o nosso olfato. É nessas horas que qualquer pessoa um pouquinho só mais cínica dá uma risadinha quando lembra que Augusto Boal está agora fora de circulação.

28 de maio de 2009

A vergonha na cara foi ali tomar um café e disse que não volta

Leio no Estadão que o programa de TV de Hugo Chávez, chamado "Alô Presidente", completa 10 anos. A "atração" é veiculada pela emissora estatal VTV. Quem vai levar o presente, porém, é o povo venezuelano. Como comemoração, Chávez fará um programa especial que tem a pretensão de ser uma grande aula - sabe-se lá do que. O presidente garantiu que "será um programa como nunca visto antes". O povo deve estar bastante ansioso para ver a novidade. Como se sabe, o comandante-em-chefe raramente abre a boca. Segundo o próprio Chávez, suas aparições, até hoje, tiveram 1536 horas de veiculação líquida. Isso é o equivalente a passar 64 dias seguidos apreciando vossa majestade na TV. Realmente estimulante.

Quem comentou as festividades foi outro craque em matéria de democracia e pluralidade de idéias. Fidel Castro, como sempre, inovou em seu discurso: "Na épica luta da Revolução Bolivariana, sem esse programa, o imperialismo e a oligarquia, com seu controle quase absoluto dos meios de comunicação de massa, suas calúnias e mentiras, teriam destruído a Revolução na Venezuela", comentou o bravo revolucionário usando argumentos novíssimos. O curioso mesmo é ver Fidel Castro falar em controle dos meios de comunicação. Em Cuba, os únicos meios de comunicação autorizados são controlados pelo governo. Mantidos por uma oligarquia que veste um verde de extremo mal gosto e promove uma ditadura feroz. Ah, é claro, trata-se de uma ditadura de esquerda. Então pode. Está tudo bem.

Resenha de A Volta do Idiota, de Montaner, Mendonza e Llosa

Odisséia Editorial, 2007, 238 pp.


No parágrafo de encerramento do Manual do Perfeito Idiota Latino-Americano, Plinio Apuyelo Mendonza, Carlos Alberto Montaner e Álvaro Vargas Llosa sentenciam com certa tristeza a própria derrota perante a idiotice ideológica que se espalhara na América Latina. Disseram isso há 13 anos. Infelizmente, não poderiam estar mais certos. A parte final dos anos 90 e os primeiros anos após a virada do século presenciaram um retorno vigoroso dos populistas de esquerda nos países latinos. As velhas bravatas nacionalistas, antiamericanas e anticapitalistas estavam de volta. E não é que o povo acreditou na conversa? Como consolo, a trinca de ases que assinou o Manual não deixou os acontecimentos passarem como um ônibus que não pára no ponto. Com a mesma pena crítica e ao mesmo tempo divertida lançaram no mercado, em 2007, A Volta do Idiota.

 

Novos tempos, novos idiotas. Antes tínhamos Fidel Castro como protagonista. Agora temos Hugo Chávez no papel capital. O presidente venezuelano é a personagem principal de A Volta. Descrito pelos autores como o "melhor aluno” de Castro, Chávez reúne com destreza as características que um idiota exemplar deve conter. Para azar dos venezuelanos, o autoritarismo figura entre tais características. Segundo A Volta, no ano de 2004 o presidente venezuelano aprovou de maneira inconstitucional o aumento de 20 para 32 cadeiras no Supremo Tribunal de Justiça. Evidentemente, a medida acarretou uma maioria favorável a Chávez no judiciário. Nem fez questão de disfarçar: assim que o magistrado eleito para presidir a corte tomou seu posto, declarou que “todo juiz que emitir julgamentos contrários aos princípios revolucionários será destituído e sua sentença anulada”.

 

Aparelhar o judiciário pareceu não bastar. Os delírios do simpático presidente causaram uma verdadeira confusão na economia daquele país. O livro nos conta que a ingerência econômica de Hugo Chávez provocou uma desvalorização de astronômicos 292% na moeda venezuelana em um período de apenas sete anos. Não se pode negar que é uma marca verdadeiramente prodigiosa. No mesmo período, o México teve uma queda de 16% (marca insignificante perto da venezuelana). Pelo visto, não dá para colocar a culpa nos EUA. Com uma economia em frangalhos, a Venezuela ficou em situação desfavorável para resolver problemas graves como a pobreza.

 

Com uma sacada inteligente, o trio de escritores divide a esquerda latino-americana em duas principais frentes: vegetariana e carnívora. A primeira pode ser descrita como um esquerdismo moderado, atento às demandas da economia mundial, respeitosa aos mercados e avessa ao radicalismo jurássico dos barbudos furiosos da velha guarda. O principal exemplo dessa esquerda serena é a presidente do Chile Michelle Bachelet. Com uma gestão predominantemente liberal, Bachelet ajudou o país a conquistar índices cada vez melhores na economia (aumento da produção) e na área social (redução da pobreza). Já a esquerda carnívora, capitaneada por Hugo Chávez, Rafael Correa e Evo Morales, parece ainda rezar na cartilha dos tempos da Guerra Fria. Presa em uma espécie de radicalismo anacrônico, desconfia de tudo que tenha cheiro de livre mercado, livre iniciativa e abertura ao capital externo.

 

No decorrer da obra, os autores nos mostram exemplos de países que conseguiram prosperar com uma agenda responsável de reformas políticas e econômicas. Em uma análise curta (porém cuidadosa) do que fizeram Espanha, Irlanda, o já citado Chile e alguns outros, a nossa trinca de ases argumenta que é possível o desenvolvimento adotando um modelo honestamente liberal. Indo, portanto, na contramão do ideário quase elevado ao posto de evangelho em nossas terras.

 

Por fim, a leitura de A Volta do Idiota nos faz questionar certos dogmas repetidos até a exaustão nos círculos pensantes da América Latina. Da mesma forma que o Manual, provoca a reflexão sobre nossos próprios erros ao longo da história. Para deixar a idiotice de lado definitivamente, o livro apresenta no último capítulo uma espécie de penicilina ideológica: a sugestão de obras fundamentais para a cura da idiotia. Hayek, Arthur Koestler e Karl Popper estão entre os indicados. Embora a leitura da “saga do idiota” seja deliciosa, espero que Mendonza, Montaner e Llosa não precisem escrever mais um livro. Que a sentença por eles decretada no fim do Manual descanse em paz algum dia.   

 

Leitura imperdível.

4 de maio de 2009

Miopia e astigmatismo

Por Yoani Sánchez: http://www.desdecuba.com/generaciony

Ponho os óculos e lanço um olhar à cidade desmantelada onde vivo. Com estes cristais coloridos da esperança, meu coração bombeia com mais tranquilidade, sem sobressaltos. Graças a eles compreeendo que não subo quatorze andares devido a ineficiência estatal - incapaz de montar o elevador depois de cinco meses - mas sim que sou uma ecologista perfeita disposta a consumir somente meu combustível humano. Com este novo vidro com que olho tudo, percebo que no meu prato a carne se ausenta, não pelo seu altíssimo preço no mercado senão porque amo os animais e evito o sofrimento e o sacrifício deles.

Careço de um conexão à Internet em casa, porém as rosadas lentes escondem de mim que este serviço seja exclusivo para funcionários e estrangeiros residentes. Talvez queiram proteger-me das “perversões” da rede, digo a mim mesma, tal e como faria o ridiculo Candido de Voltaire. Assim comprovei, por um brevíssimo tempo, ver palácios no lugar de ruínas, líderes que nos levam à vitória quando na realidade nos conduzem ao precipício e homens que se hipnotizam com minha cabeleira, ainda que eu saiba que me seguem para vigiar-me.

O problema começa quando tiro as lentes de candidez e olho o que me rodeia, com as reais cores da crise. A dor na panturrilhas volta, como resposta às grandes escadarias; começo a sonhar com uma bisteca e um modem piscando torna-se um desejo quase erótico. Jogo os óculos do otimismo da minha varanda, talvez haja alguem lá em baixo que contudo prefira usá-las, que ainda queira distorcer a realidade com eles.

Texto de 23 de março de 2009