31 de outubro de 2009

Eles são o que são; nós somos o que somos

Segue um trecho de "O Mundo Assombrado Pelos Demônios", de Carl Sagan (Cia da Letras, 2002):

"[Thomas] Jefferson teve pouco a ver com a redação concreta da Constituição dos Estados Unidos; quando ela estava sendo formulada, ele servia como embaixador norte-americano na França. Quando a leu, ficou satisfeito, mas fez duas ressalvas. Uma deficiência: não se fixava limite para o número de mandatos que o presidente podia exercer. Isso, temia Jefferson, era o caminho para um presidente se tornar rei de fato, ainda que não pela lei. A outra grande deficiência era uma declaração de direitos. O cidadão - a pessoa comum - estava insuficientemente protegido, pensava Jefferson, dos inevitáveis abusos daqueles que detinham o poder."

Thomas Jefferson viu que um presidente, ao se perpetuar indefinidamente no poder, pode trazer efeitos catastróficos a um país. Viu isso no século XVIII. Estamos no século XXI e gente como Daniel Ortega, Hugo Chávez e Manuel Zelaya não conseguem enxergar o que Jefferson já sabia há 220 anos.

27 de outubro de 2009

Publicação no Observatório II

Tive a felicidade de ter o artigo "Quando o assunto é Deus: a imprensa informa ou desinforma?" publicado no Observatório da imprensa. Aqui.

25 de outubro de 2009

Falta vergonha na cara

O Jornalista William Waack participou há alguns dias do programa Entre Aspas, exibido pelo canal fechado Globo News, da Rede Globo. Entre os assuntos discutidos no programa, deu-se destaque às posições do Brasil em relação à comunidade internacional, a situação de protagonismo do país nos últimos anos e a determinados assuntos econômicos. No decorrer do programa, Waack faz algumas críticas pontuais ao Brasil em alguns destes aspectos. Até aí, tudo normal. A crítica faz parte da opinião.

O também jornalista Paulo Henrique Amorim, em seu blog, disponibilizou a íntegra do programa. Com o seguinte título:

"Outro traíra: William Waack diz que o Brasil não presta"

Há um pequeno problema. Em nenhum momento Waack faz a afirmação que Amorim credita a ele. E também em nenhum momento se pode detectar nas falas de Waack algo que possa ser derivado para a conclusão de que "o Brasil não presta". Como se fazer críticas ao próprio país fosse evidência irremediável de algum tipo de traição. Ou seja, ou Paulo Henrique Amorim tem problemas com interpretação ou é pura e simplesmente desonesto.

Também querendo distorcer a realidade, um tal Movimento Pela Vergonha na Cara, sem a menor vergonha na cara, atribui à Waack uma frase que ele simplesmente não disse: "a reserva petrolífera pré-sal não terá relevância nenhuma ao futuro do país, em razão do desenvolvimento de energias alternativas". O que Waack diz claramente é que não se pode encarar o pré-sal como algo que automaticamente nos lançará a um, digamos, futuro glorioso. O dilema se repete: ou o Movimento Pela Vergonha na Cara possui problemas com interpretação, ou realmente não possui a menor vergonha na cara.

O link para o post de Paulo Henrique Amorim referente ao assunto pode ser acessado aqui. A reação do Movimento Pela Vergonha na Cara à participação de Waack no programa pode ser lida aqui.

23 de outubro de 2009

Quando o assunto é Deus: a imprensa informa ou desinforma?

O bom artigo de Eugênio Bucci - Notícias sobre a inexistência de Deus (publicado no Observatório da Imprensa) -, além de mostrar que a alegada notícia não é mais algo tão bombástico quanto se pensa, pode oferecer outra reflexão. Estão os jornalistas, de modo geral, devidamente preparados para lidar com a questão filosófica da existência ou inexistência de Deus?

Nos últimos anos, na esteira dos lançamentos de autores como Sam Harris, Richard Dawkins, Christopher Hitchens e outros profetas do ateísmo moderno, o imbróglio teológico veio com força às pautas. E a aceitação passiva de certas declarações tem demonstrado que os profissionais de imprensa não estão preparados para lidar com um assunto que, não é todo mundo que sabe, possui alto grau de sofisticação teórica. É possível que o despreparo venha de uma visão obtusa da filosofia como atividade desprovida de rigor. Ou até mesmo de um desconhecimento da história do tratamento filosófico da questão – enfim, má realização do dever de casa.

O resultado disso tudo é desinformar. Quando José Saramago diz em entrevista ao Estado de S. Paulo que “Deus não existe fora da cabeça das pessoas que nele creem”, está comprometido com uma tese metafísica altamente controversa e nem um pouco nova. O ar explosivo da frase do escritor perde um pouco de sua força quando nos damos conta que Anselmo, já no século XI, considerou a diferenciação entre entidades que existem somente na imaginação e aquelas que existem tanto na imaginação quanto na realidade. Deus, para Anselmo, existe tanto na imaginação quanto na realidade. Posteriormente, outros filósofos tentaram desenvolver o pensamento de Anselmo ao longo da história. Ora, se o jornalista que entrevistou Saramago já sabia da posição do escritor, poderia ter levantado a objeção de que a afirmação dada não é consensual entre os estudiosos do assunto.

A frase seguinte, dita na Itália, também merece consideração:

"Que Ratzinger tenha a coragem de invocar Deus para reforçar seu neomedievalismo universal, um Deus que jamais viu, com o qual nunca se sentou a tomar um café, demonstra apenas o absoluto cinismo intelectual da personagem."

Parece que Saramago só consideraria como evidência verdadeira da existência de Deus aquela que nos tocasse os sentidos. Um estudo filosófico sério nos diria que não necessariamente. A questão toda é, novamente, de fundo metafísico e sua implicação principal é saber se Deus é uma entidade necessária na estrutura da realidade. Por “necessário”, dentro do jargão, entendemos algo que existe e não poderia não existir. A disposição de Deus para tomar um café com o papa é algo de importância secundária. Em outras palavras, não precisamos captar Deus para que sua existência seja verdadeira.

É possível que esta concepção, digamos, materialista da evidência, seja resquício de um senso comum que considera a existência de Deus um assunto pertinente somente às ciências empíricas, esquecendo a importante contribuição que o estudo sistemático da metafísica pode oferecer. É claro que um jornalista ao lidar com o assunto não precisa estudar conceitos modais como necessidade ou possibilidade, inerentes à metafísica. Mas seria proveitoso para qualquer jornalista presente no momento da declaração entender que a via proposta por Saramago não é a mais adequada. Novamente, é só ir aos livros de história da filosofia.

A importância da lógica

Uma vez que o jornalismo é uma atividade crítica, uma boa sugestão para aguçar o caráter crítico da profissão é o estudo da lógica. Não é aceitável que um profissional que lida com argumentos tenha pouca idéia do que, afinal, é um argumento (uma experiência interessante seria perguntar para jornalistas uma definição de argumento). Com maior domínio da lógica (sobretudo aspectos da lógica informal), o jornalista do Estado poderia indagar a Saramago quais premissas sustentam sua conclusão de que Deus só existe dentro da cabeça daqueles que nele creem. No caso da declaração feita na Itália, seria pertinente perguntar o que sustenta o citado materialismo em relação à evidência.

Existem no mercado bons manuais de lógica que podem dar ao jornalista preciosas noções de argumento, validade ou invalidade de argumentos e, importantíssimo, dicas para evitar falácias. Assim como o estudo da história, é dever de casa do jornalista dominar com alguma eficácia prática a disciplina que está por trás da argumentação, pois querendo ele ou não, os argumentos estarão lá. Logo, a lógica também.

Quando o padre Manuel Morujão, citado no artigo de Bucci, diz que “um escritor da craveira de José Saramago deveria ir por um caminho mais sério”, é provável que esteja correto. Partindo das falas de Saramago, tanto na entrevista ao jornalão paulistano como na Itália, pode-se concluir que o escritor andou ignorando os livros de metafísica. Portanto, não poderia posar de autoridade no assunto.

Os jornalistas, por sua vez, deveriam ir com mais freqüência ao estudo da história da filosofia e, podendo aplicar também a usos mais gerais, ao estudo dos aspectos da lógica. Todos ganhariam. A discussão sobre a existência ou inexistência de Deus seria mais precisa e o leitor seria premiado com uma abordagem de qualidade. Já que é para colocar na mesa de debates tal problema teológico, que se faça isso respeitando certos aspectos fundamentais do assunto e que se mantenha o espírito inquisitivo e informado perante as supostas “autoridades”.

20 de outubro de 2009

Publicação no Observatório

Tive a felicidade de ter o post "Cuba e a imprensa de oposição" publicado no Observatório da Imprensa. Aqui.

13 de outubro de 2009

Bertolino, o sagaz

O jornalista Osvaldo Bertolino, que tem um blog chamado “O Outro Lado da Notícia”, anda bastante indignado com o destaque que a também jornalista Yoani Sánchez vem tendo no noticiário nacional. Yoani, cubana, acaba de lançar no Brasil o livro “De Cuba, com carinho” e até agora não foi autorizada a sair da ilha para poder comparecer ao lançamento da obra.

O problema todo é que Yoani Sánchez não é castrista. Para gente como Bertolino, só há isenção na cobertura de assuntos referentes ao regime cubano quando a abordagem é favorável. Como não é o caso, o rapaz logo trata de associar Yoani à mídia americana e à direita. Não existem tons de cinza: ou está com eles ou está do lado do temível imperialismo norte-americano. Se Yoani tece críticas ao regime ela só pode ser de direita. E se é de direita, é ruim por definição.

Bertolino parece sofrer da mesma, digamos, síndrome que sofre a jornalista Elaine Tavares (ver post abaixo). Defende com bastante vigor um regime autoritário na casa dos outros. Dentro de casa, porém, usufrui da liberdade de expressão que só as democracias liberais oferecem. Ao contrário do que acontece com o excelente blog de Yoani em Cuba, a página de Bertolino não é bloqueada por ninguém, de modo que ele pode emitir a bobagem que bem entender.

Tentando se antecipar a qualquer crítica ao fato de Yoani ter dificuldades para deixar o país, o valente nos informa que a jornalista, "como qualquer cidadão em qualquer país democrático, está submetida às leis aprovadas com ampla participação do povo cubano." Vejamos em que bicho isso dá: se Bertolino está propondo uma espécie de "absolutismo" legal, teria de aceitar também, por exemplo, um regime neoliberal, desde que tal fosse aprovado com ampla participação do povo. Acho implausível que Bertolino aceitasse isso. Essa gente só pensa em vermelho. Parece, então, que o dever de resignar-se às leis aceites pelo povo é verdadeiro desde que o regime tenha um determinado perfil. E para Bertolino este perfil tem a forma de um regime autoritário de esquerda. Então, se Cuba é um regime autoritário de esquerda, Yoani deve abaixar a cabeça. O problema da frase de Bertolino é que a amplitude dela acarreta conseqüências que ele provavelmente não aceitaria.

No mais, já que a melhor propaganda anti-comunista é deixar um comunista falar, vou reproduzir alguns trechos do post do rapaz:

“A direita brasileira está em campanha aberta para trazê-la ao Brasil como troféu de sua luta ideológica encarniçada contra o progresso e a democracia popular.

“Ao lado da China e da República Popular Democrática da Coréia (RPDC), Cuba é vítima de uma campanha pobre e medíocre que envolve até os familiares dos seus principais dirigentes.

Puta que pariu.

9 de outubro de 2009

Cuba e imprensa de oposição

Na foto, Elaine Tavares. Para ela, Cuba e liberdade de imprensa convivem bem

Como bem disseram Mendoza, Montaner e Llosa, Cuba é realmente um amor que não se esquece e nem se deixa. Um amor, contudo, cultivado em grande parte por pessoas que não estão na ilha e não vivem a realidade de um regime unipartidário que está há 50 anos no poder. É possível que se trate de um mito romântico: a imagem de alguns barbudos descendo a serra e tomando o poder num país então governado por um ditador, digamos assim, de direita, cativou o coração de muita gente. As coisas, porém, não parecem ser lá muito agradáveis na ilha. Cuba é efetivamente uma ditadura onde vigoram restrições severas às liberdades de expressão, políticas e de imprensa. A alegação de que o país, com a ajuda da extinta URSS, melhorou alguns índices sociais internos simplesmente não justifica as restrições.

Dito isto, chega a ser interessante um texto da jornalista Elaine Tavares publicado no Observatório da Imprensa em 16/06/2009. A jornalista aborda a existência de um suposto jornalismo crítico praticado em Cuba. Para sustentar sua visão, ela reproduz falas de Tubal Paez, presidente da União de Periodistas do país: "Em Cuba os jornalistas são críticos, porque é nossa função ser crítico. É o que nos ensinou a revolução, é o que ensinam na escola e é o que a União dos Jornalistas exige. Defendemos a revolução, mas aquilo que é mal feito, nós criticamos." Querendo mostrar que também há massa crítica no ato de avaliar os próprios colegas de imprensa, Paez diz que "ser protagonista do processo revolucionário é bom, mas às vezes há jornalistas que exageram na retórica ou no louvor." A pergunta que Elaine Tavares e Tubal Paez não respondem, e que surgiria com naturalidade em qualquer conversa sobre a imprensa em Cuba, é se há jornalismo de oposição legitimamente cubano que não comungue dos ideais da revolução e atue com liberdade. Poderia, por exemplo, um veículo com ideais claramente "reacionários" fincar sede em Havana?

De fato, o texto até tenta responder a algo um pouco relacionado à pergunta, mas que falha na questão central. Primeiro, Elaine Tavares afirma que "Cuba é o país onde existe o maior número de veículos de oposição." Para termos uma idéia, continua ela, "existem 32 emissoras de rádio transmitindo todos os dias desde a Flórida, sempre com conteúdo especificamente contra Cuba e contra o socialismo." Além disso, prossegue, "há uma emissora de TV, cinicamente chamada de TV Martí (nome do mais importante revolucionário cubano, também jornalista) que transmite diariamente conteúdo anti-Cuba com um sinal que é gerado por aviões que sobrevoam a ilha." A gloriosa conclusão vem de Paez: "são, portanto, mais de 1.900 horas semanais de informação anti-governo, o que nos faz crer que não há governo no mundo que tenha tanta oposição."

Conclui-se, assim, que há oposição em Cuba e o país é um exemplo de pluralidade de idéias, certo? Não necessariamente. Com base nas falas, tanto da jornalista brasileira como do jornalista cubano, é possível concluir que a imprensa de oposição ao regime comunista é feita majoritariamente de fora da ilha. A questão fundamental de saber se há imprensa de oposição fundada e registrada no território de Cuba por cidadãos cubanos fica sem resposta. Talvez uma abordagem mais conscienciosa da questão indicasse que os irmãos Castro não permitem a criação de uma imprensa verdadeiramente de oposição dentro do país. Assim, parece que Elaine Tavares substitui o papel dessa imprensa inexistente pelas que atuam fora do país e transmitem para dentro ou até mesmo por jornalistas designados pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos. E isso daria uma impressão de pluralidade de idéias.


Um pouco mais adiante, Elaine nos oferece outra tentativa. "Estão em Havana mais de 160 jornalistas que são correspondentes estrangeiros, podendo transmitir o que quiserem, sem qualquer censura." Um correspondente estrangeiro geralmente faz matérias para o veículo que está em seu país de origem. E mesmo que essa informação seja verdadeira, ela ainda nada diz sobre a questão fundamental já citada.


Também é interessante a abordagem do acesso à internet dentro da ilha. Segundo Paez, as restrições existem "porque os Estados Unidos proíbem que os cabos de banda larga sejam conectados a Cuba." Curiosa a tese. Partindo do consenso que os Estados Unidos são contrários ao regime cubano, que arma seria mais eficaz aos interesses americanos do que o livre acesso do povo à internet? E mesmo se isso for verdade, um problema ainda fica de pé. Já que o governo castrista nada tem contra o acesso dos cubanos à internet, por que bloquear o blog da jornalista Yoani Sánchez? Há, por acaso, algo que não pode ser lido?


Aliás, é curioso ver uma jornalista brasileira tecendo loas a um regime em que não vive na carne com o rigor e o desgaste do dia após dia. Quando se lê o blog de Yoani Sánchez, que mora em Cuba e vive a realidade do país, tem-se um ponto de vista completamente diferente. Yoani relata as dificuldades, a burocracia e a censura que sofre na ilha. Alguns dos contratempos são maximizadas justamente por ela ser uma jornalista que bate de frente com o regime dos irmãos Castro. Sobre o acesso à internet, a versão de Yoani é bem diferente do que sustenta o texto de Elaine Tavares. Yoani disse em entrevista à revista Época que "nenhum cubano pode contratar um serviço de internet doméstico, só altos funcionários do governo e estrangeiros." Ainda segundo ela, uma pessoa comum que queira acessar a rede precisa ir a locais públicos, como cafés e hotéis. "E o custo é o equivalente a um terço de um salário médio em Cuba – estou falando de US$ 6 a US$ 8 por hora."


Yoani Sánchez viria ao Brasil para lançar o livro "De Cuba, Com Carinho", que reúne alguns textos de seu blog. O regime, entretanto, não autorizou a visita da jornalista. "Os cidadãos cubanos são como crianças, que precisam da autorização do papai para sair de casa", afirmou à rádio CBN. De fato, um regime que trata seus cidadãos como crianças - por vezes com chineladas - provavelmente não aceitaria o estabelecimento de imprensa de oposição livre.

6 de outubro de 2009

Humor: Filosofia do Chifre

Muita gente diz por aí que a filosofia é de algo inútil. De fato, não serve para plantar, não dá para comer, não faz muita diferença na estrutura de mercados internacionais e ninguém que arrisca na Bovespa dá antes uma passadela de olhos na Metafísica de Aristóteles. O senso comum, enfim, é partidário de certo positivismo prático em que o principal lema poderia ser “se não tem aplicabilidade prática, é puro diletantismo”.


Isso tudo, evidentemente, não é verdade. Podemos pensar filosoficamente sobre os mais importantes temas da humanidade. O principal? A cornitude. É um fenômeno realmente interessante. Nunca acontece em primeira pessoa, só em terceira. Todo mundo tem um primo, um amigo ou um irmão que acordou mal acomodado no travesseiro por efeito de uma anomalia anatômica sobre a cabeça. Em suma, há mais primo, amigo ou irmão do que chifre. Comigo? Nunca!


A filosofia sempre gostou de delimitar coisas, de diferenciar coisas e de conceituar coisas. A cornitude não escapou. Existe, por exemplo, o corno metafísico. Explico: a metafísica é a área da filosofia que estuda a estrutura mais fundamental, digamos assim, da realidade. E uma vez que o chifre é uma entidade realmente existente, não poderia escapar ao estudo da metafísica. Chamamos corno metafísico aquele que possui os chifres, mas não sabe da existência deles.


Citei o verbo “saber”? Sim, e a palavra saber lembra outra área da filosofia: a epistemologia. Grosso modo, podemos definir a epistemologia como a disciplina que tenta estabelecer condições necessárias e suficientes para atribuir um determinado conhecimento proposicional a dado indivíduo – seja ele corno ou não. Dessa forma, o corno que tiver ciência da sua condição humilhante é chamado de corno epistêmico.


Atenção: todo corno epistêmico é também metafisicamente corno, mas nem todo elemento metafisicamente corno é um corno epistêmico. Alguns filósofos da cornitude estabeleceram que o coerentismo é a teoria que melhor explica a cornitude epistêmica. Logo se percebe o motivo: é perfeitamente intuitivo pensar que a proposição “sou corno” é bastante coerente com proposições do tipo “há 17 chamadas de um tal Fernando_academia no celular da minha namorada”.


Existe também o corno modal. A modalidade é basicamente o estudo de noções como possibilidade e necessidade. Há coisas que são, mas poderiam não ser; há coisas que são e não poderiam não ser. Há também coisas que não são e poderiam ser e coisas que não são e não poderiam ser. O corno modal está entre os que são e não poderiam não ser. Trata-se da espécie mais humilhada e resignada de todos os chifrudos. O corno modal é corno em todos os mundos possíveis em que ele existe. Em suma, se ele existir, ele necessariamente será corno. A expressão "mundo possível" significa "modos como as coisas podem ser". Logo, não há forma de o corno modal não ser corno.


Alguns filósofos, para salvar a pele dos cornos modais, tentaram elaborar uma teoria que diz que um corno modal é um ser necessariamente inexistente. Desse ponto de vista, um corno modal é como um triângulo quadrado. A falcatrua fica evidente quando percebemos que o triângulo quadrado é uma bizarrice analítica gritante, ao passo que o corno modal é perfeitamente aceitável conceitualmente. Falando como os essencialistas, o corno modal é essencialmente corno. Nele, o chifre não é acidental.


Todo corno é metafisicamente corno. Mas não é todo corno que é epistemicamente corno, como já dito. Todo corno modal é, obviamente, metafisicamente corno. E todo aquele que ainda não é corno é possivelmente corno. Dessa forma, há pelo menos um mundo possível em que um atual não-corno possui vistosos chifres. A cornitude é ampla. E ainda assim parecem existir mais primos, amigos ou irmãos do que chifres. E olhe que estes vêm em par.


Por fim, corno é aquele que diz: no creo en el cuerno, pero que lo hay, hay.