30 de março de 2009

Por falar em liberdade de expressão...(3)

Disse um anônimo sobre o post anterior:
Se o que é chamado de liberdade de expressão não fosse algo pejorativo, motivo para chacota e criação de preconceitos; se não representasse, como em muitas vezes, um grito sobrepujante do locutor em querer se afirmar e mostrar uma pseudo superioridade; se não fosse direcionada à uma crítica superficial e sem proposta de soluções, vistas da forma mais imparcial possível; mas se constituísse uma análise dos fatos em prol da melhoria, da contestação embasada e aprofundada, sem rotulações e comparativismos, essa liberdade pode ser garantida, preservada. Muito mais que isso, é agregada de credibilidade, coerência, aplicabilidade. Um discurso que só ofende e denigre não pode ser razoável. Vou acrescentar àquele famoso dito popular: "Quem fala o que quer, ouve o que não quer e pode criar o que não deve."
Ele só se esquece que quando alguém ou algo proíbe determinado assunto de circular, esse próprio agente atribui a si mesmo uma óbvia superioridade. Quem - tirando o papa, é claro - nesse mundo é dotado de uma perfeição tal para normatizar o que pode e o que não pode ser dito? 
Um discurso que só ofende e só denigre pode até não ser razoável. O problema é querer proibi-lo. Aliás, gostaria muito de saber qual é o limite que separa aquilo que é razoável daquilo que não é. No mais, boa parte das críticas que se fazem ao mundo islâmico são bastante razoáveis. Relativismo cultural é praga de ocidentais. Estes vêem qualquer resquício de realismo moral como uma tentativa de "julgar as outras culturas com a nossa ótica". A hipocrisia é desmascarada quando os mesmos relativistas criticam nossa "sociedade de consumo" ocidental. Ora, quando se faz um juízo de valor sobre qualquer demanda cultural, deixa-se o relativismo. Mas esse é só um dos problemas: o mais grave é que um relativista, por coerência teórica, deve ver práticas como o apedrejamento de homossexuais, chibatadas em locais públicos e até mesmo a escravidão ou a submissão das mulheres como meras manifestações culturais. 
Ninguém tem o dever de moderar nas palavras só porque um grupo de fanáticos religiosos irá se sentir ofendido. Aliás, é interessante que o autor do comentário cite a palavra "imparcialidade". Não sei, mas tenho a ligeira impressão de que ser imparcial é adotar a praga do politicamente correto - como se tivéssmos mesmo de ser imparciais. Sai pra lá! Aqui não é Teerã. Felizmente eu ainda posso chamar pedófilo de pedófilo. E não tenho interesse nenhum em sugerir melhorias no momento. Só quero criticar. Se um aiatolá ficar chateado, que mova o rabo para cima e reze para Alá. 
Já que toquei no assunto "relativismo cultural", aqui vai uma excelente refutação à teoria: http://criticanarede.com/fil_relatcultural.html. O texto é de Harry Gensler, da John Carroll University. 

27 de março de 2009

Por falar em liberdade de expressão... (2)


A Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou nesta quarta feira (25) resolução que classifica a difamação religiosa como uma violação aos, surpresa!, direitos humanos. Ou seja, a partir de agora, dizer que Maomé era um pedófilo só porque deflorou uma menina de menos de 10 anos é violação de direitos humanos e estamos conversados. Os medievais países islâmicos querem que o ocidente, onde a liberdade de expressão é razoavelmente estabelecida, se autocensure antes de fazer algum tipo de juízo religioso. 
Como seria de se esperar, os países contrários à medida - em sua maioria europeus -, foram voto vencido no pleito. Bom para os radicais islâmicos. Se a Jihad é matéria que está no Alcorão, não se pode criticá-la pelo simples fato de ser um preceito religioso. Em outras palavras, nós, ocidentais, não poderemos mais criticar uma idéia que prega claramente a morte dos infiéis. Infiel, claro, é todo aquele que não é muçulmano. 
Os radicais não precisam mais ameaçar com bombas um jornal que publicar imagens de Maomé. Agora têm aprovação da Comissão de Direitos Humanos da ONU. 
*A imagem acima foi publicada pelo jornal dinamarquês Jillands-Posten em 2005 e gerou violentos protestos por parte dos muçulmanos. 

Por falar em liberdade de expressão...

... o excelente site humorístico "Ato ou Efeito", que faz piada com quase todo tipo de situação cotidiana, foi processado por uma ONG. Motivo? O site fez sátiras humorísticas direcionadas aos vegetarianos. Resultado disso tudo? A página terá de sair do ar em poucos dias. Eis a famosa intolerância dos tolerantes. A liberdade de expressão parece valer desde que não se viole nenhuma lei informal do politicamente correto. 
Em homenagem ao processo sofrido pelo site, vou dobrar meu consumo de carne durante dois meses. Sobretudo o consumo de carne de bezerros. Berrezos são ótimos. Têm a carne macia e o barulho que fazem na grelha é mais agradável. Se eu não der certo na filosofia, vou abrir ou uma churrascaria ou um empreendimento agropecuário. Se nem uma coisa nem outra, posso virar político e fazer lobby em favor da indústria do corte. 
Vegetarianos militantes são mais chatos do que evangélicos fundamentalistas. Haja saco! E pelo visto alguns agoram querem tolher o direito de fazer até sátiras. A estes últimos, sugiro que se divirtam com um pepino e um lubrificante.
Viva a picanha ao alho! \o/

22 de março de 2009

Mais gente nervosa, ui, ai

Me contaram que o texto "Humanas em universidades", publicado aqui no dia 12 de setembro do ano passado, já chegou no Departamento de História da UFOP, em Mariana. Parece que ele anda desagradando algumas pessoas por lá. Eu jamais esperava repercussão tão grande. Se soubesse que ia deixar os bichos grilo tão raivosos, teria feito um texto melhor, mais divertido e mais preconceituoso. O que rodou nem é tão bom assim.
Só espero mesmo que não chegue no pessoal de Artes Cênicas. Eu acharia desagradável a presença de gente fantasiada de palhaço batendo tambores na porta da minha casa. Como sou só um, não poderia fazer nada além de ligar para a polícia. Tem gente que gosta de protestar vestindo roupas circenses e incomodando as pessoas com aquele balacobaco sem ritmo. A boa notícia é que ainda existe gente sensata. Quando alguns militantes da UNE foram fazer algazarra no Centro de Tecnologia da UFSC, atrapalhando as aulas, foram expulsos na marra.

21 de março de 2009

Continuando o papo

Fico feliz que tenha dito seu nome. Pelo menos agora tenho o designador rígido que disse anteriormente e não preciso te chamar de “adevogada”. Mas vamos lá. Antes de qualquer coisa, eu devo deixar bem claro que em nenhum momento vou basear meus argumentos em premissas jurídicas. Minha área é outra. De qualquer forma, acho que o assunto “liberdade de expressão” é amplo demais para ficar restrito ao direito ou o que se estabeleceu como o direito. Para simplificar um pouco a conversa, você em vermelho e eu em preto.

Pelo o que entendi, na sua opinião, basta que não haja alguma ressalva a liberdade de se expressar que estaremos resguardados de uma ditadura de opinião, regimes totalitários ou algo que o valha. Ou ainda, se não protegidos totalmente desses regimes, no mínimo estaríamos um passo distante de seu retorno. 

Não, não exatamente dessa forma. Mas eu penso que se existir um só assunto que não se permita expressar sobre, haverá uma ditadura de opinião em relação específica a tal assunto. Os países europeus que proíbem por lei os revisionistas de dar opinião não podem ser chamados, no sentido forte do termo, de estados onde vigoram ditaduras de opinião. Mas em relação a esse tema específico, podem. Claro, os revisionistas defendem algo profundamente não intuitivo e que afeta cicatrizes históricas. Mas será isso suficiente para proibir a opinião, por mais estapafúrdia que seja? Aliás, quem é o “demiurgo” que detém o poder de dizer o que pode ser dito e o que não pode ser dito? Quando há uma norma que proíbe determinado assunto ou opinião de ser veiculado, conclui-se que quem legitimou a norma possui uma espécie de acesso privilegiado a verdade. E sabemos que isso não existe. Não há infalibilidade humana. Só o Vaticano aceita a infalibilidade de um homem em certo sentido.

A banalização da liberdade de opinião, considerando a possibilidade que todas as idéias possam ser divulgadas, pode gerar um efeito inverso, deteriorando as bases do Estado de Direito, principalmente os democráticos, nos quais a busca pela igualdade material e formal dos indivíduos se faz imprescindível. Por isso, que no nosso ordenamento jurídico existem outros valores que não podemos perder de vista ao tratarmos de qualquer efetivação de um direito fundamental. Cito os mais relevantes, os quais você não parece se atentar como o princípio da dignidade humana, o direito à honra, bem como os já citados, princípios da igualdade do regime democrático e quaisquer outros inerentes a uma sociedade pluralista.

Não defendi que as pessoas não devam ser responsabilizadas por aquilo que dizem. Aliás, no Brasil, há mais uma banalização da judicialização da opinião do que o contrário. Quem acompanha a crônica jornalística sabe que qualquer coisa pode virar motivo de processo. Dias atrás, por exemplo, o ministro Gilmar Mendes processou o jornalista de Carta Capital Leandro Fortes – que inclusive foi meu professor – por algumas afirmações factuais do jornalista acerca do ministro. Mas voltando. O que eu entendo por liberdade de expressão é não apenas poder dizer o que está em voga socialmente, mas também o direito de dizer besteiras, ofensas, falsidades e todo tipo de entulho. E isso não é banalização da liberdade de expressão: trata-se simplesmente de aplicá-la. Nesse particular, uma liberdade com ressalvas deixa de ser liberdade.

Ora, uma coisa é dar plena liberdade para todos dizerem o que querem. Outra completamente diferente é levar todas seriamente. O fato de todos poderem dizer o que quiserem não vai fazer com que as idéias se relativizem. Ou seja, as idéias idiotas vão continuar idiotas e as sólidas permanecerão sólidas. É possível argumentar que um país que precisa restringir a liberdade de expressão para garantir sua saúde democrática já esteja com suas instituições frágeis. O nível de restrições à liberdade de expressão costuma ser inversamente proporcional às liberdades políticas. No mais, quando se restringem certos assuntos, as pessoas podem começar a falar por meias palavras. Alguém que diga com todas as letras que “lugar de mulher é na cozinha” é muito menos perigoso do que alguém que diga que a “mulher deve restabelecer seu dom inato dado por Deus e voltar-se exclusivamente para o lar”. Tendo a pensar que restrições à liberdade de expressão costumam ser mais restrições a como certas coisas são ditas. Mas sempre há como sofismar.

Ocorre que a divulgação de determinadas idéias possui a deletéria conseqüência de levar justamente à segregação, à discriminação e à diminuição de determinados sujeitos presentes em nossa sociedade que deveriam ser tratados como iguais.

Quais determinadas idéias? Quem determina quais determinadas idéias? Quais são as razões para achar que quem determina as idéias que não podem circular está necessariamente certo? Como posso saber que as restrições não estão sendo usadas com cunho ideológico ou partidário? Como garantir que isso nunca venha ocorrer? Não é melhor que caso ocorra um crime em decorrência de uma opinião dada, se puna o infrator somente após o ato? É fácil perceber a pertinência dessas questões quando ouvimos militantes homossexuais mais radicais. Querem punir toda e qualquer opinião contrária a condição deles. Se for assim, prendam todos os padres e pastores do país. É muito delicado arbitrar sobre quais idéias resultarão nisso ou naquilo e, ao mesmo tempo, definir o que pode transitar ou não.

Como atribuir a igualdade política a todos e consubstanciar os valores de uma sociedade livre e justa se houver a propagação psicossocial de idéias que possuem o poder de diferenciar as pessoas não em razão de sua individualidade inerente à pessoa humana, mas sim em justificativas pretensamente cientificas, culturais, religiosas ou valorativas? E digo pretensamente cientifica, pois não se trata de censurar a priori determinados estudos científicos ou revisionismos históricos sob a bandeira da tolerância e do respeito à dignidade humana. Mas sim, de se verificar a posteriori os limites de uma sustentação ideológica carregadas de um intuito discriminatório e racista mascarados por um cunho científico.

As questões anteriores permanecem. Eu adoraria que Deus, caso exista, aparecesse sobre a Terra e nos desse algumas tábuas com instruções acerca de quais idéias podem “diferenciar as pessoas não em razão de sua individualidade...”. Como isso não ocorreu até hoje, seus argumentos me parecem muito frágeis para sustentar que determinadas idéias podem ou não podem circular. Ah, uma coisa interessante: é muito curioso você dizer que determinada matéria científica pode estar carregada de um “intuito discriminatório” e, ao mesmo tempo, ignorar que a própria verificação dos “limites de uma sustentação ideológica” pode estar também carregada do mesmo “intuito discriminatório” que você aludiu. Eu não teria tanta fé no Estado. Aliás, nada matou mais na história da humanidade do que o Estado.

Portanto, não pretendo estabelecer o início de coisas que devem ou não ser faladas. Mas defendo, sim que qualquer divulgação de uma opinião deve ser vista com cautela e postura crítica, para justamente não sermos levados a acreditarmos em uma verdade forjada com meia dúzia de termos científicos, cujas conseqüências sejam a de deteriorar de forma mais ou menos sutil, mais ou menos explícita, ou ainda mais ou menos consciente, todos os direitos fundamentais relacionados à igualdade e à preservação da dignidade humana, os quais a duras penas foram conquistados e consubstanciados em praticamente todas as Constituições dos Estados que se pretendam de Direito e de todos os estatutos internacionais de Direitos Humanos.

Nisso estamos de acordo. É claro que tudo que sai por aí, mesmo com o rótulo de ciência, deve ser analisado criticamente. Ocorre que aparentemente você cai em uma sutil contradição. Não consigo ver como relacionar coerentemente as frases “não pretendo estabelecer o início de coisas que devem ou não devem ser faladas” com a frase “ocorre que a divulgação de determinadas idéias possui a deletéria conseqüência...”. Para manter a coerência, você terá de enfraquecer um pouco o que disse nessa segunda frase, pois ela aparentemente defende que há idéias que não podem ser faladas.

Por isso, se o ganhador do prêmio Nobel vier com um estudo sobre a possibilidade da inferioridade intelectual dos africanos, eu não vou querer saber se isso é ou não verdade, mas sim, vou desconfiar conforme alertou o Desembargador... O que James Watson quis ao iniciar esse estudo? Quais suas conseqüências? Até que ponto seus pressupostos teóricos são livres de uma ideologia discriminatória ou racista? Para só então, ter minha opinião sobre se tal estudo deve ou não ser censurado.

Vamos inverter um pouco as coisas. O que o Estado quer ao verificar o que quis James Watson ao iniciar esse estudo? Quais as conseqüências? Até que ponto a decisão de censurar o estudo ou não está livre de uma ideologia qualquer? Por que motivo quem analisa esse tipo de coisa está livre de uma ideologia? O estudo de Watson pode ter os motivos mais escusos do mundo. Mas avaliadores disso ou de outra matéria qualquer também podem estar munidos de motivos escusos. É o que eu disse no início. Todos nós somos falíveis, de modo que uma decisão absoluta no sentido de censurar algo pode estar equivocada. Negar isso é negar a falibilidade humana. Antes que levante a objeção, não estou defendendo nenhum tipo de anarquia. Defendo, sim, as leis e a ordem. Mas isso não me obriga a concordar com censura de manifestação de idéias, sejam lá quais forem.

Ora, seguindo esse raciocínio cada um poderia muito bem ignorar e caso queiram acreditar ou tomar uma verdade como certa em sua vida, problema de cada um!

Não. Se eu quiser acreditar que a mulher é inferior ao homem, é um problema meu. Se eu cometer violência contra a mulher, é coisa totalmente diferente. Há uma diferença entre acreditar em determinada proposição P e aplicar a proposição P.

Neste ponto, outro argumento que eu não aceito no que tange a liberdade de expressão é a verificação de quantas pessoas são ou não atingidas em seus outros direitos, ou qual o caos social que potencialmente a propagação de uma idéia preconceituosa ou racista pode gerar. Em primeiro lugar é imprevisível prever a extensão que a ideologia pode ou não chegar. Além disso, um estado democrático não está apenas para tutelar os interesses da maioria.

Se entendi corretamente, como quantificar o número de pessoas que serão atingidas por determinadas idéias? Qual é o número que faz com que algo possa circular ou não? Quem determina isso? Aliás, quando se tem a liberdade para se dizer qualquer coisa, o debate fica mais preciso e as idéias ficam mais claras. Se alguém defender publicamente a inferioridade da mulher nos termos claros que citei anteriormente em exemplo, é muito mais fácil argumentar contra isso e, dessa forma, fortalecer nossa certeza de que as mulheres não são inferiores aos homens. Vamos ao caso dos revisionistas novamente. Quando se proíbe o assunto, fica a impressão de que há algo de errado com o que sabemos. Ora, se algo é tão verdadeiro assim, não há necessidade de proibir pesquisas ou opiniões em contrário.

Para resumir minha opinião, há sim limites! Mas que só podem ser verificados por meio de uma complexa análise casual.

Será essa análise casual totalmente isenta? Muito difícil sustentar isso. O próprio fato de sermos absolutamente falíveis me dá subsídios para defender que não deve haver limites na liberdade de se expressar. Pois essa é talvez a única maneira de admitir esse fato. Quando se restringe tal liberdade, atribui-se ao ser humano um predicado que ele não tem: a perfeição. É claro que mesmo não tendo perfeição para efetuar nenhum julgamento, é absolutamente necessário que o façamos em determinadas situações. Só não admito isso em relação às opiniões. É uma medida, digamos, “apriorística” demais.

Sobre o que você disse sobre os preconceitos, tendo a concordar com tudo ou quase tudo. Não acho que seja necessário fazer nenhum comentário. Ah, sobre filosofia, eu disse que é possível fazê-la com idéias pré-concebidas. A argumentação de vários filósofos da moral religiosos, por exemplo, parte da idéia de que há uma lei natural. Se é boa filosofia ou não é uma questão a se discutir.

Não discordando do que você disse sobre a argumentação em relação a Deus, mas há grande disputa teórica sobre isso. Existem alguns argumentos clássicos em favor da existência de Deus – cosmológico, desígnio, teleológico e ontológico – que buscam provar Deus pela racionalidade. Tomás de Aquino, por exemplo, julgava não ter fé em Deus porque acreditava ter provado racionalmente a existência de algo divino. É um ramo bastante interessante da filosofia e, caso queira se aprofundar um pouco mais no assunto, recomendo algum bom livro de metafísica.

19 de março de 2009

Ainda o papo com a "Adevogada"

“Adevogada”, vou tentar ser um pouco mais breve agora, pois estou cheio de trabalhos para fazer. O que não significa, é claro, que não dê atenção ao que escreve. Eu preferiria que você se identificasse para eu ter, numa linguagem técnica, um designador rígido ao qual me apegar. Apenas gosto de saber o nome das pessoas com quem converso. Tive discussões com duas leitoras nesse mesmo blog que, como você, preferiram não se identificar. Na altura, eu fiz a mesma intervenção. Mas isso é uma questão menor.

Ah, sim, eu nem cogitei que você fosse uma psicopata que por algum motivo queria me matar. Nem mesmo que fosse alguém dedicada a me difamar por aí. De modo que eu não “posso” ficar tranqüilo a partir do momento que sei disso, já que estava tranqüilo por jamais considerar essas possibilidades terríveis! Cuidado com esse tipo de argumento. É meio semelhante com a famosa falácia “ladeira abaixo”. Mas eu não vou te aporrinhar com lógica informal.

E sim, estou de pleno acordo com sua consideração acerca do direito de responder ao que escrevo. Eu jamais iria dizer qualquer palavra contrária sobre isso. Se disse, o que não acredito, foi uma estupidez sem tamanho. Você tem todo o direito de vir aqui e escrever o que bem entender. Nisso estamos conversados. Estou totalmente disposto a ouvir o que for que diga. E sei que você também está ciente que posso concordar com suas idéias ou não.

Você diz que é um problema o fato de eu eventualmente transcender o mero humor – ou como comumente concebemos o que é uma piada. E eu não entendi porque isso seria um problema. Se eu escrevo o que escrevo, seja qual estatuto dermos aos escritos, e ao mesmo tempo admito profundamente o direito de discordarem publicamente de mim, não há problema algum. Claro, estou totalmente ciente de que o que eu escrevo pode eventualmente magoar alguém. Por exemplo, eu acredito que o papa nada mais é do que um velhote que usa saias proferindo alguns anacronismos. Num país como o nosso, isso pode soar ofensivo a milhões de pessoas. Penso nisso? Talvez. Me importo? Pouquíssimo. Deixaria de escrever isso porque ofenderia milhões de pessoas? Jamais. A liberdade de se expressar tem essas coisas: por vezes ouvimos ou lemos coisas que detestamos. Mas isso você deve saber tão bem ou melhor do que eu.

Eu afirmei que não aprovo piadas de cunho racista. Foi uma declaração bastante pessoal. Mas defendo que qualquer pessoa – e isso é muito polêmico – possa defender suas idéias sejam lá quais forem. Não acho que deva haver de início coisas que não se devam falar. Vejamos alguns casos práticos: já ocorreu, em países europeus, algumas prisões de historiadores porque declararam academicamente que o holocausto não foi exatamente o que foi. Ora, é claro que sabemos o que foi o holocausto, mas isso significa que devemos criminalizar a opinião de quem acha diferente? Outro exemplo, e célebre, foi o do biólogo americano James Watson, nobel de medicina por suas contribuições no estudo do DNA. Há pouco tempo, se não me falha a memória, ele disse que há a possibilidade de os africanos em geral serem menos inteligentes do que outros povos. É uma declaração politicamente incorreta? Muito. Vai contra todas as nossas intuições e pudores. Isso não me é muito relevante. O que eu quero saber mesmo é se isso é verdade ou não.

Sempre quando se fala em restrição à liberdade de se expressar, eu fico preocupado. O tal do "politicamente correto" que vemos hoje vigorar, por exemplo, supostamente em prol de maior tolerância entre os diferentes, pode se tornar exatamente o oposto daquilo que supostamente pretende. Ou seja, pode se tornar uma ditadura de opinião. Isso não é tão raro na história. Acontece até com certa freqüência.

Sobre preconceitos, que nada mais são do que opiniões que não podemos justificar ou, para adotar o conceito mais comum, aquilo que julgamos sem conhecer, é absolutamente disputável que seja todo e qualquer tipo de preconceito necessariamente ruim. Se pensarmos na história evolutiva, é bem capaz de existirem exemplos que mostrem que determinados tipos de preconceitos são benéficos ou se mostraram assim. Aliás, “um homem sem preconceitos é um empirista empedernido, uma besta, um monstro amoral”, disse o às vezes bom e às vezes nem tanto Reinaldo Azevedo. No mais, não sei qual sua real opinião em relação aos preconceitos. Em um momento parece desaprovar totalmente, em outro parece ser mais condescendente.

Ah, e cuidado ao falar de filosofia. Pode incorrer em alguns erros. Existem “conceitos preconcebidos” e também buscas de verdades universais que são absolutamente legítimas. Forçando um pouco, podemos colocar toda a argumentação em favor da conceituação de conhecimento como uma crença verdadeira e justificada como algo, digamos, preconcebido. Se esse exemplo não servir, podemos citar alguns sistemas morais que partem de princípios revelados e bastante sofisticados. Se deslegitimarmos isso, estaremos deslegitimando boa parte da epistemologia tradicional. Não é tão simples assim, como vê. Em relação às “verdades universais”, boa parte de toda a filosofia se dedicou e se dedica a isso, não necessariamente nesses termos. O que é o conceito modal de “necessidade” se não algo que não poderia não ser verdadeiro em qualquer hipótese? Há uma universalidade nisso.

Bom, acabei, como sempre, escrevendo demais!

18 de março de 2009

Resposta à uma "adevogada", que preferiu não se identificar

Em primeiro lugar, tanto o texto “Humanas em universidades” quanto o que postei recentemente - “Adevogados S.A” - são humorísticos. Pensei que os nobres colegas iriam perceber isso. Como não perceberam, tive de remediar e colocar um aviso tardio no início do famigerado texto que me rendeu toda essa polêmica. A reação foi desproporcional. Desconfio que algumas pessoas se sentiram dentro de alguns estereótipos indicados. Mas isso me é de uma irrelevância absurda. Segundo, e agradeço o elogio, o fato de o blog possuir textos em que verso sobre assuntos sérios não faz dele um veículo monolítico. Eu posso começar a só contar piadas aqui se quiser. Posso começar também a criar contos pornográficos. Pode ser até uma boa idéia. Vou passar a ler Syang.

Sobre minha “cômoda posição de comediante” é de fácil dedução que é em relação aos dois textos que citei acima. Sobre os outros, não. Prova disso é que o texto “Bolsa Militância e a Sociedade das Idéias Mortas” gerou certa polêmica e eu jamais o tratei como brincadeira.

Mas voltando... Eu fiz uma graça – eventualmente pesada – com esses estereótipos e não me sinto nem um pouco obrigado a ficar justificando os motivos. Além, é claro, do conteúdo humorístico, os textos refletem também um pouco como eu vejo muitas pessoas dentro dos referidos departamentos. E é um direito expressar isso quando eu bem entender. Os textos soam preconceituosos? Sim. E daí? Mesmo que refletissem integralmente o que penso, eu ainda teria o direito a ter tais preconceitos. Por falar em preconceitos, eu não gosto de comunistas, teatro de rua, filmes engajadinhos, hippies, calças quadriculadas e mais um monte de coisas. Reservo-me o direito de não gostar dessas coisas sem ter a necessidade de justificar.

E não, eu não pretendo seguir na carreira humorística. Confesso até que isso já me passou pela cabeça. É um meio bem divertido de se ganhar dinheiro. Mas infelizmente eu não sou tão engraçado assim. E quem disse que eu nunca usei um pretenso humor para descolar “uma trepadinha com alguma desavisada?” A notícia ruim é que eu não fui suficientemente engraçado com minhas piadas. A “desavisada” não caiu na conversa e preferiu sair com o estudante de direito da mesa. Mas são águas passadas. Hoje, por uma maravilhosa ironia, namoro com uma estudante de, oh céus, direito. Meu conselheiro espiritual disse que é uma espécie de karma. Que seja, maravilhoso karma! Aliás, três dos meus melhores amigos são estudantes de direito.

Sobre seus conselhos humorísticos, agradeço. Já comecei a decorar algumas piadas. Já devo ter umas cinco do Ary Toledo na cabeça. E isso é sério!

Uma coisa que você disse eu certamente vou acatar. Sempre quando eu fizer uma piada ou um texto satírico, vou colocar um aviso antes. E não porque eu ache que deva fazer isso, pois eu não devo, mas para evitar que encham meu maravilhoso saco. No mais, se alguém leu essas sátiras e incorreu em pensamentos arrogantes ou preconceituosos, é problema de criação vinda de papai e mamãe. Eu não pratico autocensura. Não me pauto pelos outros. E não vou passar a me pautar pelos outros só porque eventualmente alguém leu meu blog e começou por acaso a detestar calças quadriculadas. E aí entro em outro ponto que você citou...

Sobre fazer piadas com “feridas históricas” e “traumas humanitários”, você provavelmente está se referindo a piadas racistas. Pelo menos foi o que eu entendi. Não sei se você notou, mas eu não fiz piadas racistas. E isso torna essa advertência meio sem sentido. O fato de sacanear alguns tipinhos não faz com que eu aprove piadas racistas. Simples assim.

Um filósofo tem respostas para tudo, partindo de estereótipos e preconceitos? Ou, justamente eles só sabem que nada sabem?

Nem uma coisa nem outra. Se um filósofo sério, no seu trabalho filosófico, parte de estereótipos e preconceitos, provavelmente não vai ser levado muito em consideração. Numa mesa de bar ou no campo do humor a coisa muda. Por outro lado, se eles só sabem que nada sabem, refutam-se a si mesmos, pois eles contradizem a frase justamente por saber algo

Ah, estou sempre aberto ao diálogo. Mas eu prefiro que não seja com anônimos. Um dos poucos a mostrar a cara e reclamar pessoalmente comigo sobre o texto foi o estudante de direito que cito no último escrito satírico. Se alguém quiser conversar comigo, que converse, mas adoraria que me mostrasse a carinha.

Ah, você disse algo sobre o eventual poder dos meus textos. Acertou. Quero mesmo é dominar o mundo :) 

Abraços e, sem cinismo, obrigado pelo recado. Mas da próxima, gostaria que se identificasse.

Cristo, acabei me justificando demais. 

14 de março de 2009

Adevogados S.A

Acho que nunca mais conto uma piada. Pior ainda é escrever textos satíricos. Estes, nem em pensamento. Depois que publicaram no departamento de filosofia um texto satírico de minha autoria sobre estereótipos, algumas pessoas ficaram realmente infelizes. Teve gente que pediu que eu fundamentasse as piadas. Era o que faltava. Além de explicar as piadas, agora tenho de fundamentá-las. Quando me contarem piada de português, vou pedir fundamentações científicas que mostrem que os lusos possuem, digamos, uma "lógica diferenciada". Ora, vão à merda.
Um dos indignados - que inclusive pregou no mural uma resposta ao texto "Humanas em universidades", pivô da confusão - condenou o texto por ser ofensivo e preconceituoso. Ele só se esqueceu que também usou de certos preconceitos ao escrever um texto condenando o preconceito. Juro que fiquei com pena das "comadres" que ele cita querendo compará-las a mim. Eu não faria isso. Respeite as comadres!
O indignado é estudante de direito. Só um estudante de direito pode começar um texto de resposta a uma sátira invocando a Constituição. Eu me senti lisonjeado. O rapaz conclamou o artigo 5º para responder um texto humorístico. É de uma grandiloquencia ímpar. Acho que, se em vez de um texto satírico, eu tivesse escrito uma receita de pudim, o garoto pregaria no mural as resoluções sanitárias em vigência no país.
Eu já sacaneei os estudantes de direito e/ou advogados? Não? Vou quebrar minha promessa. Essa é a hora.
ADVERTÊNCIA AOS IDIOTAS: texto meramente humorístico e não dotado de validade científica. 
Dentro dos departamentos de humanas, mas em áreas mais aristocráticas, existem os estudantes de direito. Os estudantes de direito costumam ser figurinhas bem interessantes. Eles têm pose. Muita pose. Afinal, sabem exatamente como acabar com você. Alguns deles, para mostrar erudição, citam artigos, leis, incisos, parágrafos únicos, emendas e qualquer chatice do juridiquês até em mesas de boteco. Fazem questão de ser bastante herméticos. Quando ninguém entende nada, é mais fácil enganar. Dá até para às vezes descolar uma trepadinha com alguma desavisada. Eu já disse que eles gostam muito de latim? Pois é, estudante de direito que não goza ao repetir aquelas lindas expressões em latim não é estudante de direito. Expressões como Data Venia, In Absentia, Mutatis Mutandis, Lex Scripta e as já clássicas habeas corpus e habeas data fazem a alegria dos aspirantes. Não tem como não se sentir mais bem dotado sexualmente após aprender essas pérolas. Aí se formam...
E começam os problemas de verdade. Se já se achavam proto-deuses, agora têm certeza de sua divindade. Quando falam, estão em um pedestal. Quando escrevem, parecem fazer questão de que ninguém entenda o que está escrito. A escritra jurídica e os processos jurídicos são verdadeiramente kafkianos. Mesmo assim tem advogado que acha que, no Brasil, a justiça funciona direito. É claro que é corporativismo de classe. Num país em que processos simples podem demorar décadas e quase ninguém é preso por nada, isso soa como piada de advogado feita por advogado. Ah, claro, eu não posso me esquecer: com exceção da área de saúde, os advogados são os únicos profissionais que gostam de ser chamados de doutor. No Brasil, qualquer bacharel quer ser chamado de doutor. Já mencionei as famosas carteiradas? "Sou advogado, sou advogado!", gostam de repetir quando, por exemplo, parados numa blitz. Como se isso significasse alguma coisa. Chega. Mais dois comentários e posso ser processado.
O Brasil ainda guarda a velha mania de valorizar demais advogado. Somos caipiras e subservientes até nisso. Nosso olhar de baixo para cima reflete os tempos em que graduação de respeito era ou em medicina ou em direito. Sempre tivemos um tom solene de mais no trato de advogados. Pelo visto, eles gostaram da idéia. Tanto que se acham doutores antes mesmo de defender um mestrado. É advogado de mais, pose de mais, beca de mais, faculdade de direito de mais, terninhos em ônibus de mais, penteadinhos de mais e justiça de menos. 
Céus, fiz mais uma sátira. E agora lidando com perigo real. Que medo :)

9 de março de 2009

Agora eu sou Glorinha Kalil e pior que o Clodovil...

Alguém publicou no mural do Departamento de Filosofia da UFOP meu texto "Humanas em universidades", do dia 12 de setembro do ano passado. Pelo visto, teve gente que não gostou. Já me chamaram de Glória Kalil e disseram até que eu estava pior do que o Clodovil. Se essa gente escutasse as dicas que a simpática da Glorinha Kalil dá no Fantástico, talvez se vestisse com um aspecto menos sujo e circense.
É possível também que até o Clodovil ajude. O estilista e político certamente recomendaria aos barbudinhos revolucionários o hábito de tomar mais de três banhos por semana. Se se limitassem somente à poluição mental, tudo bem. Ruim mesmo é quando a gente começa a sentir o cheirinho de longe. Dizem que o próprio Che Guevara não era muito chegado nessa coisa de higiene. Até nisso imitam o guru argentino.

3 de março de 2009

Ditadura? Sim, mas só de um lado

Causou bastante indignação editorial publicado na Folha de S. Paulo em que o veículo classifica a ditadura militar vivida no Brasil de “ditabranda” - que, de fato, é um termo de gosto discutível. Várias cartas foram enviadas à redação do jornal repudiando o uso da expressão. As cartas lembravam os horrores e abusos cometidos durante o período militar. Tudo muito normal até aí. Ocorre que há uma grande falta de compreensão sobre a intenção da palavra “ditabranda”. Ao se ler o editorial – Limites à Chávez, 17 de fevereiro -, fica bastante claro que o termo é comparativo. Não é muito difícil de perceber. É só tomar nota do número de cadáveres produzidos pela ditadura tupiniquim e comparar com as ditaduras que vigoraram no Chile e na Argentina, por exemplo. O porquê do "branda" não demora a aparecer. Se compararmos, porém, nossa ditadura com os regimes de esquerda, a distância se torna ainda mais superlativa e nossos militares, como disse Roberto Campos, tornam-se meros escoteiros mirins.

Ao que parece, teve intelectual da USP que não percebeu isso. A professora da faculdade de educação Maria Victória Benevides vociferou: Mas o que é isso? Que infâmia é essa de chamar os anos terríveis da repressão de ‘ditabranda’? Quando se trata de violação de direitos humanos, a medida é uma só: a dignidade de cada um e de todos, sem comparar ‘importâncias’ e estatística... Além de não ter percebido o óbvio, a acadêmica ainda tenta relativizar as violações de “direitos humanos”. Isso significa que os regimes de Castro, Mao e Stálin estão no mesmo nível de brutalidade da ditadura militar brasileira. Pura estratégia. Quando se tem um peso de cadáveres muito maior nos regimes autoritários de esquerda, a saída é relativizar. O cinismo fica evidente em números. Somente Stálin matou cerca de 20 milhões. O regime de Castro já matou cerca de uma centena de milhares. Além de Maria Victória, o professor Fábio Konder Comparato, também da USP, escreveu indignado à Folha clamando por respeito à pessoa humana. Eu adoraria ver o professor Konder fazer esse escarcéu em nome da dignidade das “pessoas humanas” em Cuba.

Eis a respsota da Folha às reações de Benevides e ComparatoA Folha respeita a opinião de leitores que discordam da qualificação aplicada em editorial ao regime militar brasileiro e publica algumas dessas manifestações. Quanto aos professores Comparato e Benevides, figuras públicas que até hoje não expressaram repúdio a ditaduras de esquerda, como aquela ainda vigente em Cuba, sua ‘indignação’ é obviamente cínica e mentirosa.

Por algum motivo, a professora Maria Victória parece ter ignorado a réplica do jornal. Talvez ela não entenda o que ocorre em Cuba como uma ditadura. Se não é uma ditadura, é o que? Parte dos nossos intelectuais de esquerda - como Maria Victória, Fábio Konder, Marilena Chauí, Tarso Genro e Emir Sáder, por exemplo - possui o terrível hábito de lembrar os horrores de nossa ditadura – que realmente ocorreram – e, ao mesmo tempo, se nega a condenar regimes como o cubano ou o que Chávez quer instalar na Venezuela. Aliás, ainda há quem diga que a Venezuela dá aula de democracia. Como se plebiscitos atrás de plebiscitos fossem indicadores de saúde democrática. Das duas, uma: ou esses intelectuais sofrem de uma conveniente amnésia ideológica ou é um caso de duplipensar (expressão criada por George Orwell para descrever a atitude de ser acreditar em duas proposições contraditórias ao mesmo tempo).

Vivemos uma ditadura que foi perversa? É claro que sim. Porém, a choradeira da esquerda intelectual só vai fazer algum sentido e ter credibilidade quando passar a condenar seus ditadores prediletos. A começar por Fidel Castro. Será que topam o desafio? Improvável. Ditaduras são só os regimes autoritários de direita. Ditaduras de esquerda, pelo visto, não são ditaduras.  

1 de março de 2009

Chávez, o ditador de Deus

O caudilho venezuelano Hugo Chávez, não bastasse sua luta messiânica pelo socialismo na Venezuela, resolveu se aprofundar mais em suas quinquilharias intelectuais. Segue o juramento que os ministros venezuelanos tiveram de fazer para jurar lealdade ao ditador:
Juro por Deus que não darei descanso à minha alma, ao meu braço ou à minha mente até que não tenha aprofundado o socialismo de que precisamos, e que acompanharei com lealdade este comandante-em-chefe que Deus nos trouxe para levar adiante o socialismo de que precisamos. Antes morto do que traidor.
Além da avacalhação socialista, Chávez agora invoca uma certa teoria do direito divino para governar. Se foi supostamente Deus quem coloclou Chávez no poder, eis aí o melhor argumento em favor do ateísmo. 

PT, Israel e o ultraje seletivo*

No mês passado, a PUC do Rio assinou um convênio com a Universidade de Tel Aviv para um intercâmbio de alunos. Na opinião de Valter Pomar, secretário de relações exteriores do PT, foi uma decisão equivocada. “Não é época para um acordo desse tipo”, disse Pomar ao jornal israelense Haaretz. Para ele, “seria apropriado aplicar ao governo de Israel o mesmo tratamento dado ao governo da África do Sul durante o apartheid”, isto é, o boicote.

Pomar deixou claro que falava em seu nome, e não em nome do PT – provavelmente porque, na última vez em que falou em nome do partido para esculhambar os israelenses, comparando-os aos nazistas, foi devidamente desautorizado por petistas proeminentes, como Paul Singer, Marta Suplicy e Tarso Genro.

A idéia de Pomar não é nova. Vários movimentos de esquerda em todo o mundo defendem o boicote a Israel, supostamente em nome dos direitos dos palestinos, ao mesmo tempo em que se solidarizam com regimes despóticos que reprimem minorias e oposicionistas em geral.

Um exemplo é o Irã. Presidido por Mahmoud Ahmadinejad, chefe de governo convidado a visitar o Brasil pelo presidente Lula (que é do partido de Pomar), o Irã condena homossexuais à morte, adúlteros a apedrejamento e minorias religiosas à prisão. Conforme diz a Anistia Internacional, 30 anos depois da Revolução Islâmica a violação dos direitos humanos persiste no Irã. Nem por isso, Valter Pomar pediu boicote aos iranianos.

Outro exemplo é a Síria. Feroz ditadura desde 1970, que não tem problemas em mandar assassinar adversários no Líbano, o governo sírio tem sido cortejado pelo presidente Lula (que é do partido de Valter Pomar). Segundo a Anistia Internacional, a Síria é pródiga em perseguição, tortura e execução de presos políticos: “Ser um politico ou ativista de direitos humanos na Síria requer coragem – o governo é intolerante com a dissidência”. Não há registro de que Valter Pomar tenha feito alguma uma campanha de boicote contra a Síria.

Podemos falar também de Cuba. O regime cubano, como sabe todo aquele que foi razoavelmente alfabetizado, há 50 anos promove repressão a dissidentes, tortura de presos e autoritarismo explícito. Diz sua Constituição, em pleno vigor, que “nenhuma das liberdades reconhecidas para os cidadãos pode ser exercida se contrariar a existência e os objetivos do Estado socialista, ou se contrariar a decisão do povo cubano de construir o socialismo e o comunismo; violações a este princípio podem ser punidas pela lei”.

Apesar disso, o presidente Lula (que é do partido de Valter Pomar) classificou o ex-ditador Fidel Castro de “único mito vivo da história da humanidade”, e não se tem notícia de que Pomar tenha tentado promover algum boicote contra Cuba. Pelo contrário: na mesma ocasião em que fez a apologia do comandante, o presidente Lula (que é do mesmo partido de Pomar) disse: “Respeito muito que cada povo decida seu regime político – esse negócio da gente ficar aqui no Brasil dizendo que bom é assim, bom é assado – vamos deixar que os cubanos cuidem do que eles querem na política”. Então estamos combinados: o que o governo cubano faz em relação a seus projetos tirânicos de poder é problema dos cubanos; já o que o governo israelense faz em relação a sua segurança é problema dos petistas.

Nada disso exime Israel de críticas. Muito pelo contrário. Israel merece ser criticado duramente pelo que faz com os palestinos – recentemente, por motivos que só um burocrata insano é capaz de explicar, os israelenses vetaram a entrada de um carregamento de macarrão em Gaza. Isso mesmo, macarrão. Como ironizou um congressista americano que estava em Gaza na ocasião: “Alguém já tentou matar você com um pedaço de macarrão?”.

No entanto, promover boicotes a Israel, e apenas a Israel, enquanto se faz vista grossa às violações cometidas pelos “companheiros” em outros países, é mais do que ignorância. É anti-semitismo mesmo.

*Texto de Marcos Guterman, blogueiro do Estadão