Fico feliz que tenha dito seu nome. Pelo menos agora tenho o designador rígido que disse anteriormente e não preciso te chamar de “adevogada”. Mas vamos lá. Antes de qualquer coisa, eu devo deixar bem claro que em nenhum momento vou basear meus argumentos em premissas jurídicas. Minha área é outra. De qualquer forma, acho que o assunto “liberdade de expressão” é amplo demais para ficar restrito ao direito ou o que se estabeleceu como o direito. Para simplificar um pouco a conversa, você em vermelho e eu em preto.
Pelo o que entendi, na sua opinião, basta que não haja alguma ressalva a liberdade de se expressar que estaremos resguardados de uma ditadura de opinião, regimes totalitários ou algo que o valha. Ou ainda, se não protegidos totalmente desses regimes, no mínimo estaríamos um passo distante de seu retorno.
Não, não exatamente dessa forma. Mas eu penso que se existir um só assunto que não se permita expressar sobre, haverá uma ditadura de opinião em relação específica a tal assunto. Os países europeus que proíbem por lei os revisionistas de dar opinião não podem ser chamados, no sentido forte do termo, de estados onde vigoram ditaduras de opinião. Mas em relação a esse tema específico, podem. Claro, os revisionistas defendem algo profundamente não intuitivo e que afeta cicatrizes históricas. Mas será isso suficiente para proibir a opinião, por mais estapafúrdia que seja? Aliás, quem é o “demiurgo” que detém o poder de dizer o que pode ser dito e o que não pode ser dito? Quando há uma norma que proíbe determinado assunto ou opinião de ser veiculado, conclui-se que quem legitimou a norma possui uma espécie de acesso privilegiado a verdade. E sabemos que isso não existe. Não há infalibilidade humana. Só o Vaticano aceita a infalibilidade de um homem em certo sentido.
A banalização da liberdade de opinião, considerando a possibilidade que todas as idéias possam ser divulgadas, pode gerar um efeito inverso, deteriorando as bases do Estado de Direito, principalmente os democráticos, nos quais a busca pela igualdade material e formal dos indivíduos se faz imprescindível. Por isso, que no nosso ordenamento jurídico existem outros valores que não podemos perder de vista ao tratarmos de qualquer efetivação de um direito fundamental. Cito os mais relevantes, os quais você não parece se atentar como o princípio da dignidade humana, o direito à honra, bem como os já citados, princípios da igualdade do regime democrático e quaisquer outros inerentes a uma sociedade pluralista.
Não defendi que as pessoas não devam ser responsabilizadas por aquilo que dizem. Aliás, no Brasil, há mais uma banalização da judicialização da opinião do que o contrário. Quem acompanha a crônica jornalística sabe que qualquer coisa pode virar motivo de processo. Dias atrás, por exemplo, o ministro Gilmar Mendes processou o jornalista de Carta Capital Leandro Fortes – que inclusive foi meu professor – por algumas afirmações factuais do jornalista acerca do ministro. Mas voltando. O que eu entendo por liberdade de expressão é não apenas poder dizer o que está em voga socialmente, mas também o direito de dizer besteiras, ofensas, falsidades e todo tipo de entulho. E isso não é banalização da liberdade de expressão: trata-se simplesmente de aplicá-la. Nesse particular, uma liberdade com ressalvas deixa de ser liberdade.
Ora, uma coisa é dar plena liberdade para todos dizerem o que querem. Outra completamente diferente é levar todas seriamente. O fato de todos poderem dizer o que quiserem não vai fazer com que as idéias se relativizem. Ou seja, as idéias idiotas vão continuar idiotas e as sólidas permanecerão sólidas. É possível argumentar que um país que precisa restringir a liberdade de expressão para garantir sua saúde democrática já esteja com suas instituições frágeis. O nível de restrições à liberdade de expressão costuma ser inversamente proporcional às liberdades políticas. No mais, quando se restringem certos assuntos, as pessoas podem começar a falar por meias palavras. Alguém que diga com todas as letras que “lugar de mulher é na cozinha” é muito menos perigoso do que alguém que diga que a “mulher deve restabelecer seu dom inato dado por Deus e voltar-se exclusivamente para o lar”. Tendo a pensar que restrições à liberdade de expressão costumam ser mais restrições a como certas coisas são ditas. Mas sempre há como sofismar.
Ocorre que a divulgação de determinadas idéias possui a deletéria conseqüência de levar justamente à segregação, à discriminação e à diminuição de determinados sujeitos presentes em nossa sociedade que deveriam ser tratados como iguais.
Quais determinadas idéias? Quem determina quais determinadas idéias? Quais são as razões para achar que quem determina as idéias que não podem circular está necessariamente certo? Como posso saber que as restrições não estão sendo usadas com cunho ideológico ou partidário? Como garantir que isso nunca venha ocorrer? Não é melhor que caso ocorra um crime em decorrência de uma opinião dada, se puna o infrator somente após o ato? É fácil perceber a pertinência dessas questões quando ouvimos militantes homossexuais mais radicais. Querem punir toda e qualquer opinião contrária a condição deles. Se for assim, prendam todos os padres e pastores do país. É muito delicado arbitrar sobre quais idéias resultarão nisso ou naquilo e, ao mesmo tempo, definir o que pode transitar ou não.
Como atribuir a igualdade política a todos e consubstanciar os valores de uma sociedade livre e justa se houver a propagação psicossocial de idéias que possuem o poder de diferenciar as pessoas não em razão de sua individualidade inerente à pessoa humana, mas sim em justificativas pretensamente cientificas, culturais, religiosas ou valorativas? E digo pretensamente cientifica, pois não se trata de censurar a priori determinados estudos científicos ou revisionismos históricos sob a bandeira da tolerância e do respeito à dignidade humana. Mas sim, de se verificar a posteriori os limites de uma sustentação ideológica carregadas de um intuito discriminatório e racista mascarados por um cunho científico.
As questões anteriores permanecem. Eu adoraria que Deus, caso exista, aparecesse sobre a Terra e nos desse algumas tábuas com instruções acerca de quais idéias podem “diferenciar as pessoas não em razão de sua individualidade...”. Como isso não ocorreu até hoje, seus argumentos me parecem muito frágeis para sustentar que determinadas idéias podem ou não podem circular. Ah, uma coisa interessante: é muito curioso você dizer que determinada matéria científica pode estar carregada de um “intuito discriminatório” e, ao mesmo tempo, ignorar que a própria verificação dos “limites de uma sustentação ideológica” pode estar também carregada do mesmo “intuito discriminatório” que você aludiu. Eu não teria tanta fé no Estado. Aliás, nada matou mais na história da humanidade do que o Estado.
Portanto, não pretendo estabelecer o início de coisas que devem ou não ser faladas. Mas defendo, sim que qualquer divulgação de uma opinião deve ser vista com cautela e postura crítica, para justamente não sermos levados a acreditarmos em uma verdade forjada com meia dúzia de termos científicos, cujas conseqüências sejam a de deteriorar de forma mais ou menos sutil, mais ou menos explícita, ou ainda mais ou menos consciente, todos os direitos fundamentais relacionados à igualdade e à preservação da dignidade humana, os quais a duras penas foram conquistados e consubstanciados em praticamente todas as Constituições dos Estados que se pretendam de Direito e de todos os estatutos internacionais de Direitos Humanos.
Nisso estamos de acordo. É claro que tudo que sai por aí, mesmo com o rótulo de ciência, deve ser analisado criticamente. Ocorre que aparentemente você cai em uma sutil contradição. Não consigo ver como relacionar coerentemente as frases “não pretendo estabelecer o início de coisas que devem ou não devem ser faladas” com a frase “ocorre que a divulgação de determinadas idéias possui a deletéria conseqüência...”. Para manter a coerência, você terá de enfraquecer um pouco o que disse nessa segunda frase, pois ela aparentemente defende que há idéias que não podem ser faladas.
Por isso, se o ganhador do prêmio Nobel vier com um estudo sobre a possibilidade da inferioridade intelectual dos africanos, eu não vou querer saber se isso é ou não verdade, mas sim, vou desconfiar conforme alertou o Desembargador... O que James Watson quis ao iniciar esse estudo? Quais suas conseqüências? Até que ponto seus pressupostos teóricos são livres de uma ideologia discriminatória ou racista? Para só então, ter minha opinião sobre se tal estudo deve ou não ser censurado.
Vamos inverter um pouco as coisas. O que o Estado quer ao verificar o que quis James Watson ao iniciar esse estudo? Quais as conseqüências? Até que ponto a decisão de censurar o estudo ou não está livre de uma ideologia qualquer? Por que motivo quem analisa esse tipo de coisa está livre de uma ideologia? O estudo de Watson pode ter os motivos mais escusos do mundo. Mas avaliadores disso ou de outra matéria qualquer também podem estar munidos de motivos escusos. É o que eu disse no início. Todos nós somos falíveis, de modo que uma decisão absoluta no sentido de censurar algo pode estar equivocada. Negar isso é negar a falibilidade humana. Antes que levante a objeção, não estou defendendo nenhum tipo de anarquia. Defendo, sim, as leis e a ordem. Mas isso não me obriga a concordar com censura de manifestação de idéias, sejam lá quais forem.
Ora, seguindo esse raciocínio cada um poderia muito bem ignorar e caso queiram acreditar ou tomar uma verdade como certa em sua vida, problema de cada um!
Não. Se eu quiser acreditar que a mulher é inferior ao homem, é um problema meu. Se eu cometer violência contra a mulher, é coisa totalmente diferente. Há uma diferença entre acreditar em determinada proposição P e aplicar a proposição P.
Neste ponto, outro argumento que eu não aceito no que tange a liberdade de expressão é a verificação de quantas pessoas são ou não atingidas em seus outros direitos, ou qual o caos social que potencialmente a propagação de uma idéia preconceituosa ou racista pode gerar. Em primeiro lugar é imprevisível prever a extensão que a ideologia pode ou não chegar. Além disso, um estado democrático não está apenas para tutelar os interesses da maioria.
Se entendi corretamente, como quantificar o número de pessoas que serão atingidas por determinadas idéias? Qual é o número que faz com que algo possa circular ou não? Quem determina isso? Aliás, quando se tem a liberdade para se dizer qualquer coisa, o debate fica mais preciso e as idéias ficam mais claras. Se alguém defender publicamente a inferioridade da mulher nos termos claros que citei anteriormente em exemplo, é muito mais fácil argumentar contra isso e, dessa forma, fortalecer nossa certeza de que as mulheres não são inferiores aos homens. Vamos ao caso dos revisionistas novamente. Quando se proíbe o assunto, fica a impressão de que há algo de errado com o que sabemos. Ora, se algo é tão verdadeiro assim, não há necessidade de proibir pesquisas ou opiniões em contrário.
Para resumir minha opinião, há sim limites! Mas que só podem ser verificados por meio de uma complexa análise casual.
Será essa análise casual totalmente isenta? Muito difícil sustentar isso. O próprio fato de sermos absolutamente falíveis me dá subsídios para defender que não deve haver limites na liberdade de se expressar. Pois essa é talvez a única maneira de admitir esse fato. Quando se restringe tal liberdade, atribui-se ao ser humano um predicado que ele não tem: a perfeição. É claro que mesmo não tendo perfeição para efetuar nenhum julgamento, é absolutamente necessário que o façamos em determinadas situações. Só não admito isso em relação às opiniões. É uma medida, digamos, “apriorística” demais.
Sobre o que você disse sobre os preconceitos, tendo a concordar com tudo ou quase tudo. Não acho que seja necessário fazer nenhum comentário. Ah, sobre filosofia, eu disse que é possível fazê-la com idéias pré-concebidas. A argumentação de vários filósofos da moral religiosos, por exemplo, parte da idéia de que há uma lei natural. Se é boa filosofia ou não é uma questão a se discutir.
Não discordando do que você disse sobre a argumentação em relação a Deus, mas há grande disputa teórica sobre isso. Existem alguns argumentos clássicos em favor da existência de Deus – cosmológico, desígnio, teleológico e ontológico – que buscam provar Deus pela racionalidade. Tomás de Aquino, por exemplo, julgava não ter fé em Deus porque acreditava ter provado racionalmente a existência de algo divino. É um ramo bastante interessante da filosofia e, caso queira se aprofundar um pouco mais no assunto, recomendo algum bom livro de metafísica.
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