15 de novembro de 2009

O dito que nada diz

Na edição de número 137 da revista Cult, Francisco Bosco escreve um artigo sobre o "não dito" em algumas obras literárias. O "não dito", apresenta ele, é um modo de "como não dizer de forma singular" dentro da obra. Em certa altura do texto, Bosco tenta comparar, no que concerne ao "não dito", a obra "Leite Derramado", de Chico Buarque, à "O som e a fúria", de William Faulkner. Até aí, vá lá, a teoria da literatura deve dar conta desse tipo de meandro narrativo e nada há de terrível na comparação de obras. O problema se dá na absoluta pomposidade praticada pelo articulista em certos trechos. Refletindo sobre o princípio negativo, Bosco nos brinda com o seguinte parágrafo:

"Para além dessa mera descrição de procedimentos, importa observar que o princípio negativo que os orienta [os personagens] não constitui, ele mesmo, uma positividade. Em outras palavras, o não dito dessas narrativas é um mero não dito. Ele é, certamente, um efeito do dito, mas não chega a ser um modo negativo de dizer. Pois, como procurarei mostrar adiante, existe o não dito que é um modo de dizer."

Passe os olhos no parágrafo acima. Tente de novo. Mais uma vez. Qualquer leitor normal provavelmente andaria por estas linhas sem fazer a menor idéia do que querem dizer - mesmo com o auxílio do resto do texto. Admitindo que, de fato, o trecho queira dizer alguma coisa, o significado é praticamente tapado pelo excesso de abstrações exigidas do leitor. Não é um bom ponto de partida acompanhar o que o autor quer demonstrar sem fazer muita idéia do que ele quer demonstrar. Poucas pessoas têm paciência para reler um trecho cinco ou seis vezes. A obviedade gritante de que um artigo tem de ser o mais claro possível é constantemente ignorada. Os maneirismos acadêmicos tornam o exercício da clareza uma tarefa quase impossível. A vontade de ostentar um desempenho estilístico superlativo freqüentemente assassina um assunto interessante.

Existem, porém, casos mais graves. Em algumas situações a empolação estilística vem acompanhada de um bônus desagradável: a completa falta de noção. Pode ser sintomático que as áreas ligadas ao estudo da literatura foram um dos grandes expoentes de uma tradição de escrita que prima pelas trapalhadas vernaculares e, nos casos mais graves, pela estupidez pura e simples. Ficasse só nos estudos da literatura, não seria tão mal. Problema maior é quando filósofos famosos começam a pontificar sobre a "realidade"[¹]. Francis Wheen oferece um exemplo de deboche intelectual em seu delicioso "Como a picaretagem conquistou o mundo". O autor da façanha é ninguém menos do que Gilles Deleuze:

"Em primeiro lugar, os eventos singularidades correspondem a séries heterogênas, organizadas num sistema que não é estável nem instável, mas 'metaestável', dotado de uma energia potencial na qual se distribuem as diferenças entre as séries. (...) Em segundo lugar, as singularidades possuem um processo de auto-unificação sempre móvel e deslocado, na medida em que um elemento paradoxal atravessa as séries e as faz ressoarem, envolvendo os pontos singulares correspondentes num único ponto aleatório e todas as emissões, todos os lances de dados, numa única jogada."[²]

Como sugere o próprio Wheen, podemos passar horas fitando o parágrafo, tomar drogas alucinógenas para entendê-lo ou até mesmo tentar decompô-lo. Não adianta: o resultado será sempre o mesmo. Trata-se de um amontoado de palavras completamente destituído do mais ralo sentido. É quase aquilo que os portugueses chamam por "algaraviada". Aqui, diferente do texto de Francisco Bosco, é impossível supor que haja sentido. Só podemos rezar para que a frase "um dia, talvez, o século seja deleuziano", de Michel Foucault, não passe de puro delírio. Se um século, qualquer que seja, chegar a ser deleuziano, tanto pior para o século.

Richard Dawkins, em "O capelão do Diabo", também oferece um bom exemplo da mais lustrosa cara de pau. Jacques Lacan, um dos papas da psicanálise, teve realmente a coragem de dizer que o órgão masculino erétil "é igualável a raiz quadrada de -1 da significação produzida acima, do gozo que ele restitui pelo coeficiente de seu enunciado à função de falta de significante (-1)." Ora, aqui também não há qualquer chance de defesa. A sentença de Lacan não passa de pura bobagem. No caso, com o agravante de usar inadvertidamente elementos da matemática. Espero que ninguém pense em Lacan quando estiver com o órgão erétil.

É muito difícil levar a sério um teórico que diz uma coisa dessas - mesmo se estiver, em outro momento, dizendo algo sério. É uma atitude bastante sensata ter reservas quanto a tudo que um homem que proferiu uma patifaria desse nível disser. É mais ou menos como aquela história do garoto que sempre fingia estar afogando para pregar peças nos outros. No dia em que se afogou de verdade, ninguém deu a mínima.

Não há, de fato, a menor necessidade de se escrever um artigo ou texto comum com arroubos de grandiloquëncia estilística. Isso só servirá para aborrecer o leitor que tiver a bondade de pegar o texto para lê-lo. É no mínima uma falta de delicadeza com quem lê. Talvez seja interessante que Francisco Bosco tenha isso em mente no momento de construir um parágrafo como o citado aqui. Já no caso de Deleuze e Lacan, a coisa parece chegar ao domínio da pura patifaria intelectual. Recorrendo ao velho verniz de erudição disparatada que tende a esconder a pura falta de conteúdo, alguns pensadores do mesmo calibre ainda gozam de grande prestígio. Mas sempre surge um Alan Sokal[³] para acabar com a mixórdia.

[¹] Entre aspas, é claro, uma vez que, segundo certos papas do desconstrucionismo, a realidade é só uma construção textual.

[²] Pelo visto, o trecho é famoso. Richard Dawkins usa esta mesma passagem de Deleuze como exemplo de patifaria intelectual ao resenhar o livro "Imposturas Intelectuais", de Sokal e Bricmont.

[³] Alan Sokal, físico, é responsável por um dos momentos mais divertidos da academia norte-americana. Em 1996, submeteu um artigo completamente destituído de sentido à revista Social Text, editada pela Duke University Press. A revista é conhecida por enrolações pós-modernas e análises culturais disparatadas. O artigo de Sokal - Transgressão das fronteiras: por uma hermenêutica transformativa da gravidade quântica - foi publicado pela revista. Logo depois, Sokal informou que o texto era uma fraude repleta de nonsenses. O episódio abalou a reputação da revista e rendeu-lhe o prêmio ig-nobel de literatura em 1996. De forma olímpica, a Social Text seguiu em frente e continua a ser publicada.

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